Get me outta here!

terça-feira, 30 de setembro de 2014

MANUEL BANDEIRA - UMA PEQUENA AMOSTRA DA POESIA

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa
Os Sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— “Meu pai foi à guerra!”
— “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”.
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — “Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas…”

POESIA MARGINAL

Geração mimeógrafo

geração mimeógrafo (ou movimento Alissara) foi um movimento, ou fenômeno sociocultural  brasileiro que ocorreu imediatamente após a Tropicália, durante a década de 1970, em função da censura imposta pela ditadura militar , que levou intelectuais, professores  universitários,  poetas e artistas em geral, em todo o país, a buscarem meios alternativos de difusão cultural, notadamente o mimeógrafo, tecnologia mais acessível na época. Da tecnologia mais usada vem o seu nome.

Sua produção literária não foi aceita por grandes editoras, pelo menos até 1975, quando a editora Brasiliense publicou o livro "26 Poetas Hoje". Por estar à margem do circuito editorial estabelecido, sua poesia foi denominada poesia marginal. A produção artística desta geração igualmente não circulava em tradicionais galerias. A geração mimeógrafo também se expressou através da música, do cinema e da dramaturgia, sendo a sua produção poética a mais lembrada, possivelmente por ser aquela produção mais adequada às restrições de suporte impostas pela página mimeografada. As outras artes podiam ser divulgadas, porém não poderíamos ouvir uma canção ou ver um filme em um pequeno jornal ou revista mimeografados, ou fotocopiados .


Poesia marginal


No Brasil, poesia marginal é a designação dada à  poesia  produzida pela geração mimeógrafo, incluindo aí poetas absolutamente desconhecidos que produziram suas obras fora do eixo Rio-São Paulo, embora ao redor do mundo se use o termo para referir-se à tendências que funcionam independen -temente  de uma poesía "oficial", canonicamente aceita.
O gênero de poesia que foi denominado de "marginal" no Brasil se tornou conhecido por este nome porque seus poetas abandonaram os meios tradicionais de circulação das obras, através de (editoras e livrarias), e buscaram meios alternativos, realizando cópias mimeografadas de seus trabalhos, comercializados a baixo custo, vendidos de mão em mão, nas ruas, em praças e nas  universidades. Através dela, os poetas da geração mimeografada queriam se expressar livremente em pleno regime da ditadura militar, bem como revelar novas vozes poéticas.
Esta tradição marginal se estendeu pelos anos de 1980, tendo utilizado também o recurso da fotocópia e a produção de fanzines.
Possivelmente, possa-se considerar uma continuidade desta tendência na poesia que se encontra apenas na Internet, sendo produzida por poetas que não usam outro meio de divulgação, à parte de um mercado literário propriamente dito, ou da indústria cultural, por postura ou exclusão, estando à margem não por motivos políticos, como a poesia marginal dos anos de 1970, mas, principalmente, econômicos.
Nos EUA, o termo "poesia marginal" é usado para designar a poesia feita pelos poetas chamados de pós-beats.

 

Influências e características

Influenciada pela primeira fase do Modernismo brasileiro, pelo  Tropicalismo e por movimentos de contracultura, tais como o rock, o movimento hippie, histórias em quadrinhos e o cinema, a poesia marginal é tendente à coloquialidade, à espontaneidade, à experimentação rítmica e musical, ao humor, à paródia e à representação do cotidiano urbano . É uma exceção a algumas destas tendências o poeta Roberto Piva, mais tendente ao Surrealismo e próximo à poesia da Geração Beat, demonstrando grande erudição em seus poemas, tal qual o faz Geraldo Carneiro, que, no entanto, utiliza frequentemente recursos semelhantes aos da poesia concreta.
A poesia marginal sempre foi do povo do gueto, a dos participantes da antologia 26 Poetas Hoje, apresenta também, no geral, tendência à oposição ao concretismo, pelo menos à sua forma mais usual, sendo a exploração da subjetividade a principal característica a opô-los àquele movimento

Paulo Leminski, Sérgio Sampaio, Torquato Neto, Tom Zé, Waly Salomão e Chacal: representantes da “cultura marginal” *
Trabalho de Hélio Oiticica que define em poucas palavras o movimento conhecido como poesia marginal

A frase de Hélio Oiticica — artista performático, pintor e escultor —, define bem o período cultural conhecido como Movimento Marginal, que influenciaria a produção cultural no Brasil nos anos setenta. A Geração Mimeógrafo, ou Poesia Marginal, contou com importantes nomes que divulgaram a nova concepção artística na literatura brasileira (inovação encontrada também no Concretismo), fruto das primeiras rupturas literárias apresentadas pelos escritores modernistas da segunda década do século XX.
Na literatura e na poesia, a marginália foi representada por nomes como Paulo Leminski, José Agripino de Paula, Waly Salomão, Francisco Alvim, Torquato Neto e Chacal. No campo musical, já que a marginália foi um movimento que influenciou as diversas artes, os principais nomes desse período foram Sérgio Sampaio, Tom Zé, Jorge Mautner, Jards Macalé e Luiz Melodia, que posteriormente foram rotulados pela imprensa como “compositores malditos” da MPB, epíteto ingrato e nada simpático para aqueles que não encontravam espaço nas grandes gravadoras de discos da época.
O inconformismo com os moldes literários impostos pela academia e com a chamada “cultura oficial” brasileira, responsável por deixar à margem toda produção cultural que estava fora dos padrões, foi a força motriz para esse grupo de artistas criativos que subverteram a mesmice ao propor uma constante inovação poética. A Poesia Marginal não ganhou um capítulo só seu nos livros didáticos de  Literatura Brasileira, mesmo porque nunca foi considerada um movimento literário, e sim um movimento de poesia, mas ainda assim deixou um legado para diversos poetas e escritores. Selecionamos três “poemas marginais” para você ler com os olhos e mergulhar em uma interessante experiência sensorial. Boa leitura!


JOGOS FLORAIS
Cacaso

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.


(será mesmo com dois esses
que se escreve paçarinho?)

Amor bastante
Paulo Leminski

quando eu vi você
tive uma ideia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante


um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
RÁPIDO E RASTEIRO
Chacal


vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro, tiro o sapato
e danço o resto da vida
RECEITA

Nicolas Behr

Ingredientes:
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles

Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas

corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver
parte do sangue pode ser substituído
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões
SALA SUNYATA
Waly Salomão

Ó, tabula rasa.
Nada vezes nada, noves fora nada.
Sol nulo dos dias vãos. Lua nula das noites vãs.

Eis que atingi o ponto Nadir.
Se todas as coisas nos reduzem a
                                               ZERO
é daí do
                                               ZERO
                                               que temos que partir. 
SONETO

Ana Cristina César
Pergunto aqui se sou louca

Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar

E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores

quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?

GOSTEI POSTEI - ERNANI FRAGA - JOÃO E MARIA


domingo, 28 de setembro de 2014

ÁLVARO DE CAMPOS - A VERDADEIRA LIBERDADE

A Verdadeira Liberdade
ÁLVARO DE CAMPOS
A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!

A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?
Álvaro de Campos, in "Poemas (Inéditos)" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

FERNANDO PESSOA - O AMOR

O Amor
Fernando Pessoa
O AMOR, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.              
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

sábado, 27 de setembro de 2014

JOWILTON AMARAL DA COSTA - O MANGUEZAL

Manguezal - iGUi Ecologia
O Manguezal
Jowilton Amaral da Costa
       Lauro andava pelo cais, rememorando, melancolicamente, os bons tempos que ficaram para trás. A tristeza talhava sua face com cinzéis afiados e cruéis, ao passo que a dor lhe envolvia o corpo como uma couraça, tornando-o um homem duro; impenetrável. Bem próximo dali, no manguezal, ele viveu os melhores dias de sua vida. Seus pensamentos voavam longe durante a caminhada, viajavam no tempo, estacionando há vintes anos no passado, quando ele, Lauro, tinha dez anos de idade e Luciano, seu irmão caçula, apenas seis. Durante o verão eles ocupavam quase todos os seus dias de férias ali, no mangue. Caçavam caranguejo por várias horas ininterruptas. Chegavam entre seis e sete da manhã, na hora que o pai deles saía para o trabalho, e só retornavam para casa, que ficava a menos de um quilômetro, quando a barriga começava a reclamar de fome, o que acontecia só por volta das três da tarde, pois, sempre levavam com eles alguns mantimentos para superarem tantas horas de árdua labuta. No fim do dia eram recompensados. Sempre traziam uma boa quantidade de crustáceos, que eram vendidos na feira do peixe, no mesmo dia à noite. Cada corda de caranguejo, - com quatro caranguejos por corda -, era negociada por três reais. A pesca rendia a eles, todos os dias, de vinte a trinta caranguejos, o que dava uma média de seis cordas por dia. Proporcionando-lhes, no mínimo, dezoito reais.
 No fim da semana eles obtinham uma bela grana, quase cem reais. A maioria do dinheiro, claro, ficava com Lauro, o mais velho deles, Luciano apenas levava uma ajuda de custo, como Lauro costumava falar. Luciano sempre protestava, chorava e esperneava, dizendo que nunca mais iria com seu irmão caçar caranguejo. No entanto, no outro dia, no mesmo horário, lá estava Luciano enfiado em suas botas plásticas amarelas, amarradas com os cadarços de um tênis velho, com um enorme chapéu de palha socado em sua cabeça, que só deixava a mostra uma pequena parte de seus olhos negros e miúdos, e vestindo sua surrada roupa de pescador. Lauro sempre continha uma gargalhada ao vê-lo daquele jeito. As velhas botas, que eram de Lauro, chegavam quase na sua virilha e era improvável que ele pudesse andar, mas, ele andava, e com desenvoltura. O que mais divertia Lauro era o porte de seu pequenino irmão. Do alto dos seus um metro e cinco de altura ele mantinha uma nobreza de rei, sua seriedade era de um severo e bem sucedido empresário. Ele levava aquilo muito a sério, ele queria comprar sua bicicleta com o dinheiro que ganhava - Jamais realizou esse sonho. E era exatamente essa obstinação e integridade que não deixavam que Lauro zombasse dele. Lauro se aproximava do seu irmão caçula e dizia: - Então meu pequeno marujo, preparado para mais um dia de batalha. E Luciano respondia: - Sim meu capitão. E batia uma desajeitada continência.
Saiba porque os manguezais são tão importantes
 Nesse mesmo verão, há duas décadas, Luciano desapareceu. Lauro degusta, até hoje, o gosto de fel da culpa. O acre sabor do arrependimento. Naquela manhã fatídica, Lauro amanheceu febril e não se levantou para ir pescar. Luciano foi até o quarto do irmão e o encontrou deitado na cama, com o corpo todo coberto com uma grossa manta e, ainda assim, com muito frio. - Lauro, está na hora de irmos pescar, papai já saiu, levanta logo. - Eu estou doente seu cara de merda, não percebeu? - Eu não sou cara de merda não! - É sim. Um tremendo cara de bosta, a bosta mais fedida que eu já senti. - Sou nada, você que é um cara de pum! Os dois se olharam e caíram na gargalhada. - Que algazarra é essa à uma hora dessas da manhã? Calem suas matracas, já! Gritou a mãe deles da porta da cozinha. Eles taparam a boca com as mãos e continuaram rindo, desta vez muito mais intensamente, só que de forma abafada. Aqueles xingamentos só eram uma forma, pouco comum, de demonstrarem o amor que sentiam um pelo outro. Lauro pediu que ele chegasse mais perto da cama e ajeitou o chapelão que cobria metade do rosto de Luciano. - Infelizmente hoje não vai dar para ir. Estou muito fraco, não vou conseguir pescar desse jeito. - Poxa Luciano, você tem que ir, está faltando muito pouco pra eu conseguir comprar aquela bicicleta que seu Tatu está vendendo. Seu Tatu era o dono de uma pequena bicicleteria na esquina da rua que eles moravam. A bicicleta em questão era uma enorme barra forte vermelha, já usada e precisando de uns bons ajustes, entretanto, era o sonho de consumo de Luciano. Ele parecia uma formiga em cima de um elefante rubro, quando andava naquela bicicleta. Ele já tinha dado muitas voltas com ela. Tanto insistiu com seu Tatu, que acabou conseguindo pedalar a sua futura magrela, como ele mesmo se referia a ela. - Porra Luciano, não tá vendo que eu estou com febre, como é que você acha que eu poderei caçar? - Sei lá maninho. Dá um jeito aí. Toma aquele remédio ruim que mamãe me dá quando estou doente. Ele é muito amargo, mas fico logo bom quando tomo ele. Vou chamar mamãe. E ia saindo impetuosamente quando Lauro, já sem nenhuma paciência, gritou. - SEU BOSTINHA VOLTE AQUI, AGORA! Luciano deu um pulo de medo e voltou rapidinho para junto da cama do irmão. Lauro continuou, com um sorriso satisfeito nos lábios, devido ao susto que Luciano tomou: - Olhe bem pra mim, com muita atenção. Mamãe já esteve aqui e já me deu o remédio, mas, eu só poderei ir pescar amanhã ou depois de amanhã. Compreende? Luciano balançou sua cabeça afirmativamente, e a aba do seu chapéu por pouco não roça o nariz do irmão. Lauro emendou: - Não se preocupe com sua bicicleta, se, por acaso, não conseguirmos pescar durante a semana, eu prometo que completo o dinheiro que falta para comprar sua bicicleta. Está bem assim? Luciano, novamente, balançou a cabeça confirmando. De repente, levantou seus olhos para o irmão mais velho e falou com entusiasmo. - Hei Lauro, e se eu fosse pescar sozinho? - Nem pense nisso, seu merdinha. - Mas, eu consigo fazer sozinho, tenho certeza disso. Eu aprendi com você, o melhor de todos. Eu vou lá e volto rapidinho, pego só o suficiente pra inteirar o que falta. - Não! Está me ouvindo, Luciano. É muito perigoso. Não vá! - Está bem, eu não vou. Respondeu Luciano. Contudo, ele foi e nunca mais voltou.
Manguezal: o ecossistema considerado um grande berçário
 Suas botas amarelas foram encontradas a dois quilômetros de onde eles pescavam, numa região muito pantanosa. O corpo dele nunca foi encontrado. Lauro jamais voltou ao local de suas aventuras de férias. Seu estômago embrulhava só de passar por perto daquele lugar. Porém, hoje, uma força incontrolável o levou até ali. Algo sem explicação movimentou suas pernas na direção do cais. Ele caminhava absorto, como se estivesse sonâmbulo, acometido de um transe. Eram três e meia da madrugada. O cais estava movimentado, o burburinho do entra e sai de mercadorias e pessoas era caótico. O cheiro dos pescados, mariscos e frutos do mar inundavam o velho porto. Lauro distanciou-se da confusão de vozes e se direcionou para o mangue. À medida que se afastava do cais, mais silencioso e escuro ficava. Ele seguia pela estreita calçada feita de tábuas, bem na beira do estuário, no encontro do rio com o mar. A cada passo, a madeira envelhecida rangia sob seus pés. Depois de um longo tempo andando, chegou à escadaria que levava a prainha, de onde não se ouvia mais nenhum som vindo da feira dos peixes. Somente o assobio melodioso do vento, vindo do mar, podia ser escutado. Estranhamente, pelo horário, já deveria estar amanhecendo. No entanto, nenhuma luz iluminava aquele lugar. Ao contrário disso, a escuridão tornava-se cada vez mais intensa à medida que o manguezal se aproximava. O forte cheiro de enxofre, característico dos manguezais, entranhava-se pelas narinas de Lauro, trazendo muitas lembranças infantis, que caíram sobre ele como uma caudalosa queda d’água, banhando-o de saudade e aflição. O solo pobre em oxigênio, embora rico em nutrientes, é a resposta para o cheiro de ovo podre dos manguezais. As bactérias usam o enxofre, pela falta do oxigênio, no processo de decomposição dos resíduos. Daí é que vem o pestilento odor destes ricos ecossistemas. O manguezal era composto pela vegetação de mangue-vermelho ou rhizophora mangle, também chamado de sapateiro. As cascas destas árvores, quando raspadas, mostram uma intensa coloração avermelhada. O solo é lodoso e, em muitos lugares, a lama poderia cobrir um adulto por inteiro. Lauro foi se embrenhando por dentro da mata de árvores tortas e raízes envergadas, que surgiam de dentro da lama, como espetos voltados para o céu. A pouca iluminação fazia que ele, de quando em quando, tropeçasse em tocos fincados no pantanoso solo e se arranhasse em finos galhos espalhados por toda parte. Seus pés, calçados em caros sapatos, afundavam até a altura do tornozelo. De súbito, seus olhos foram atraídos para uma iluminação a poucos metros a sua frente. Era a luz de um candeeiro. Sua abstração, que o acompanhava ate ali, foi quebrada, e ele pode ver, com muita convicção, a sombra de uma pequena figura que segurava uma espécie de lamparina. A sombra se agachava e enfiava seus braços dentro de buracos no solo. Ele conhecia muito bem aquele movimento, era, sem dúvida, um caçador de caranguejos, um marisqueiro.Manguezal: o que é e quais animais vivem nele - Estudo Kids
 As pernas de Lauro encontravam-se atoladas até a canela. Seus movimentos eram lentos e desajeitados. Com muito esforço ele conseguiu se aproximar do pequeno pescador. Apertou bem os olhos tentando sugar o máximo de luz possível e, descobriu, que o caçador, na verdade, era uma criança. Uma criança com uma fisionomia muito conhecida. Contudo, ele não sabia onde poderia ter conhecido aquele menino. Há muito tempo ele não pescava ou sequer tocava no assunto. Então, como ele poderia conhecer aquele jovem marisqueiro? Não fazia sentido. Ele agora estava a poucos passos do garoto. Para seu espanto o menino falou com ele antes que pudesse abrir a boca. - Lauro, por que demorou tanto? Lauro ficou petrificado. Aquela voz era de seu irmão Luciano. “Não pode ser, essa voz... Não, isso é loucura, Luciano está morto há vinte anos, devo estar tendo algum pesadelo”. - Você não está sonhando não, meu irmão. Sou eu mesmo, o Luciano. A pequena figura do menino, envolto nas sombras do manguezal, se virou lentamente na direção de Lauro. Lauro tentou dar um passo para trás, mas, foi impedido pelos pés presos na lama acinzentada do terreno e caiu de costas. Suas duas mãos, na tentativa de apoiar a queda, deslizaram maciamente para dentro do lodaçal, até os cotovelos. Nesta hora, galhos e raízes das árvores do mangue correram como serpentes, deslizando em silêncio pela lama que cobria o lugar, e envolveram seus braços e pernas, num forte aperto, prendendo-o no solo. Todos os seus movimentos estavam tolhidos por aquelas amarras. Lauro tentou gritar mais não conseguiu. Seu coração ribombava no seu peito. Estava com uma sensação de ser engolido, tragado. Como se o chão se abrisse e ele estivesse caindo, caindo... O medo apossou-se dele de forma definitiva; implacável. “Deus do céu, o que está acontecendo? Isso não pode ser verdade, eu tenho que me acalmar, eu tenho que me acalmar...”. Ele repetia freneticamente. - Isso mesmo maninho se acalme. Sou eu, Luciano, seu irmãozinho. Não tenha medo de mim. E a pequena sombra do menino levantou o candeeiro iluminando seu rosto com uma mortiça luz. O rosto estava deformado, várias partes de suas faces estavam com pedaços arrancados, mostrando músculos e ossos, metade de seu nariz encontrava-se carcomido, seus dentes apodreceram, e o que se via era uma fileira amarronzada de pequenos tocos calcificados. Eles eram pontiagudos, com se tivessem sidos afiados. Os olhos eram de uma brancura leitosa e assustadora. Deles escorriam uma massa esbranquiçada, de textura gelatinosa, que desciam pelo rosto em forma de lágrimas endurecidas. - Não tenha medo meu querido irmão. A voz desta vez saiu demoniacamente sibilante e fria. Uma gargalhada monstruosa saiu daquela criatura diabólica. Lauro se debateu com todas as suas forças, na tentativa de se soltar dos galhos que o prendiam. Com muito esforço desvencilhou sua mão direita das raízes que a prendiam, e quando tentava desamarrar a esquerda, outros galhos e raízes correram e seguraram sua mão, amarrando-o de novo. Desta vez, entrelaçando-se por todo o corpo de Lauro. Pernas, braços, cabeça e tronco foram imobilizados. Agora ele estava deitado no chão. Luciano aproximou-se de Lauro e falou: - há muito tempo eu estou esperando você aqui meu irmão. Você me abandonou, nunca mais veio até aqui. Mas eu sabia que um dia agente se encontrava. Não estava com saudade de mim, maninho? E outra medonha gaitada estrondou pelo mangue. Lauro não conseguia falar, estava com uma grossa raiz tapando sua boca. Ele apenas grunhia coisas ininteligíveis. Luciano se abaixou e ficou ajoelhado em frente ao rosto do irmão, baixou a cabeça e encostou seus pardacentos lábios no rosto assustado de Lauro, dando-lhe um gelado beijo. Levantou-se e inclinou-se, muitas vezes, cheio de mesura, a todas as partes do pantanoso lugar, como se estivesse reverenciando algum mestre, alguma entidade maior; o mangue. Lentamente Lauro deslizou para o interior daquela lama repugnante e apodrecida. Muito lentamente ele foi desaparecendo, enquanto Luciano o olhava embevecido. Poucos minutos depois, Lauro tinha sido completamente deglutido, para o estômago faminto daquele extraordinário mangue. No tempo em que Luciano, agradecia por ter seu irmão de novo por perto, para poderem caçar caranguejos por toda a eternidade.
fim

PARTE DA FAUNA DO MANGUEZAL
Exercícios sobre o Manguezal com GABARITO E RESUMO

FIORIN - RETÓRICA: A DECOLAGEM DA FIGURA

Retórica
A decolagem da figura
Figuras retóricas são processos de construção do discurso que dominam a vida cotidiana, não só o gênero poético

JOSÉ LUIZ FIORIN

Montagem sobre o Cristo Redentor estampa a capa da revista The Economist : misto de metáfora e metonímia para retratar a ascensão do Brasil

No dia 14 de dezembro de 1968, o Jornal do Brasil trazia, na primeira página, a notícia mais importante do dia: na véspera, fora baixado o Ato Institucional nº 5, que exacerbava a ditadura em que o país vivia desde 1964. A manchete, no alto da página, era a seguinte: Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado. Na coluna mais à esquerda, aparecia o texto do Ato expedido pelo presidente Médici. Sobre ele, havia um círculo branco e dentro, um retângulo cercado por linhas negras com o seguinte texto: 
"Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras."
Observe-se que, no contexto discursivo, o texto sobre o clima é uma metáfora do ambiente político que reinava no Brasil. Há uma analogia sêmica entre os elementos que servem para a descrição do clima (tempo negro, temperatura sufocante, ar irrespirável, ventos fortes, etc.) e do ambiente político. Isso mostra que a metáfora e a metonímia são processos de construção discursiva.
Como explica Jakobson, todos os processos simbólicos humanos, sejam eles sociais ou individuais, organizam-se metafórica e metonimicamente. Vejam-se, por exemplo, os processos miraculosos ou mágicos de cura ou de malfeitos. Na Bíblia, relata-se muitas vezes que Cristo cura tocando alguém, um cego, por exemplo. É um processo de contágio ou de contiguidade. Por isso, poderia ser chamado metonímico. Certos povos africanos têm um procedimento de magia chamado imitativo. Por exemplo, enfiam-se agulhas num órgão de um boneco que faz as vezes de uma dada pessoa. Acredita-se que a parte do organismo representada será atingida. Trata-se de um procedimento metafórico, porque trabalha com a semelhança entre o boneco e a pessoa e o órgão do boneco e da pessoa.

Agatha Christie criou dois detetives que têm grande importância em sua obra porque aparecem como figuras-chave em vários romances: Poirot e Miss Marple. O processo de descoberta dos dois é completamente diverso. O de Poirot é metonímico: a partir de um dado indício (parte), ele reconstrói o crime, por meio de uma série de implicações. O de Miss Marple é metafórico: ela percebe analogias entre o crime que está investigando e outro já ocorrido. Termina afirmando que o mal é sempre igual. Será que poderíamos tirar conclusões sobre os estereótipos sociais a respeito dos papéis tradicionais da mulher e do homem, quando vemos, na obra da escritora inglesa, que este raciocina por implicações e aquela, por analogia?
           
           Manchete : crítica velada à ditadura sob metáfora do clima
Não devemos pensar que a metáfora e a metonímia aparecem apenas nos gêneros poéticos. Ao contrário, os gêneros da vida cotidiana estão repletos de conotações: ele é difícil de engolir, ferver de raiva, estamos num beco sem saída, ter o rei na barriga, trânsito engarrafado . Não prestamos mais atenção ao valor conotado dessas expressões. Quando se observa a história da língua, por exemplo, nota-se que quase todas as palavras têm sentidos oriundos de conotações. "Candidato" vem do latim candidus, que quer dizer "branco brilhante". "Candidato" passou a significar "postulante a um cargo, emprego, honraria, etc.", porque, em Roma, os aspirantes aos cargos eletivos vestiam toga branca. Não percebemos mais as palavras e expressões conotadas em nossa língua, mas somos muito sensíveis à conotação, quando aprendemos outra língua. Um estrangeiro que não esteja acostumado às expressões conotadas e cristalizadas num determinado idioma faz rir ao substituir um de seus componentes por um sinônimo: "descascar o ananás" em lugar de "descascar o abacaxi"; "mercado preto" por "mercado negro"; "tapete rolante" em vez de "esteira rolante". Cada língua conota diferentemente e, por isso, a maneira de ver o mundo varia de uma para outra.

    Açúcar 

       Jakobson nota que "toda metonímia é ligeiramente metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico" (1969, p. 149). Isso quer dizer que a uma metáfora subjaz uma predicação metonímica e sob uma metonímia há uma relação metafórica.
No conto "A aia", de Eça de Queirós, quando se fala dos temores da rainha viúva de que seu reino fosse invadido, aparece a frase: "Uma roca não governa como uma espada", que tem o valor semântico de "Uma mulher não governa como um homem". Trata-se de uma metonímia, porque "roca", por ser um instrumento considerado típico do trabalho feminino, significa "mulher", enquanto "espada", por referir-se a uma atividade tida como masculina, quer dizer "homem". Há uma transferência de valor semântico do instrumento para o autor. No entanto, há uma concentração sêmica num traço comum aos dois termos coexistentes: roca e mulher e espada e homem. Esse traço é masculino e feminino respectivamente. Essa é o elemento metafórico da metonímia.
Em Sem Açúcar , de Chico Buarque aparecem as seguintes metáforas: Sua boca é um cadeado/ E meu corpo é uma fogueira. Elas indicam o silêncio do homem e a paixão da mulher. Trata-se de metáforas, porque há um traço comum entre o cadeado e o silêncio, que é o fechamento, e entre a fogueira e a paixão, que é o ardor, a exaltação. No entanto, o cadeado é o instrumento da ação de fechar, o que significa que há uma transferência sêmica, que tem um valor metonímico; a fogueira é a causa do ardor, que é seu efeito, o que indica também a presença de um matiz metonímico na metáfora.

A revista The Economist , de 12 de novembro de 2009, fez uma reportagem de capa sobre o Brasil. Trata-se de uma metáfora, porque entre o foguete e o Brasil há um traço sêmico comum: a decolagem, a ascensão. No entanto, essa metáfora está fundada numa metonímia: o Cristo Redentor é o foguete que significa o Brasil. O objeto que caracteriza um lugar denota esse lugar. 

José Luiz Fiorin
 é professor do Departamento de Linguística da USP e autor de As astúcias da enunciação   

OLAVO - VIAGEM FANTÁSTICA

Viagem Fantástica 
Conto originalmente escrito para a comunidade do Rubem no Orkut.
 Olavo Berquó
             Mais uma vez eu estava diante do computador pensando na história que escreveria. O tema era desafiador e, portanto, exigia esforço e concentração um pouco além do normal. Eu precisava pensar em viagens, em turismo, em fantástico e, quem sabe, além disto.
           Comecei pelos lugares que gostaria de conhecer. Mas, obviamente, não era este o caminho. Nepal, Alasca, Norte da África... Fantásticos e... normais. Minha viagem tinha que ser muito mais extraordinária do que isto. Lembrei-me dos Esdrons. Para quem não conhece, “O Mistério de Arghtar” é um livro que escrevi tempos atrás e que narra as aventuras de meus filhos, os Esdrons, em Viscaldar. Aquele pequeno planeta perto de Alnitak, uma das estrelas do cinturão de Órion, precisava de ajuda. Fiquem calmos, eles conseguiram resolver, mesmo que parcialmente, o problema. Só que, naquela existência, os meninos desenvolveram algumas habilidades que acabaram por manter depois que, através do portal de Or, voltaram para casa. A Thirzá, por exemplo, continuou sabendo como desagregar seus átomos de modo a atravessar ou se incorporar a outros corpos materiais.
           Fiquei um bom tempo pensando nisto... e me ocorreu a ideia. Se eu tinha alguém na família com tal poder, quem sabe não conseguiria algo parecido? Passei a me concentrar, mas sem saber no que. Coloquei os fones de ouvido e dei um clique sobre o arquivo de músicas de relaxamento. Na sala escura apenas a tela do computador estampando as paisagens que nunca visitei emitia alguma luz... e deixei minha mente livre. A melodia era suave e lenta. Fui ficando com sono, mas mantive os olhos abertos, fixos naqueles lugares maravilhosos. Um formigamento estranho passou a percorrer o meu corpo. Deixei rolar. Mais alguns instantes e a sensação aumentou. Parecia que uma corrente elétrica de mil volts tomava conta de mim. Os fones davam a impressão de querer se incorporar aos meus ouvidos. Mas não era isto o que acontecia. Eu estava sendo sugado por eles. Por instantes, tudo ficou escuro. Foram momentos breves. Logo a seguir, eu estava em um ambiente muito claro, apenas a janela mostrava uma sala escura. Através do vidro, pude reconhecer a minha mesa de trabalho. Voltei a atenção para o lado oposto e meu coração disparou. Tentei acordar. Fiz de tudo para me libertar daquele sonho estranho que eu mesmo tinha provocado. Mas não adiantou, eu já estava acordado.
          Tentei respirar fundo, mas foi em vão. Bits não respiram. Olhei para o meu corpo, meus braços, minhas pernas. Nada estava lá. Depois do pavor, comecei a admirar o poder da mente. Eu sentia o meu coração aos pulos, mas não tinha coração, a sensação de suor gelado me incomodava, mas não havia suor, nem corpo, nem nada. Aliás, tudo. De algum modo, tudo estava ali. Apenas a forma era outra. Desisti de lutar.
      Quando me acalmei, voltei minha atenção para o lugar onde me encontrava, percebi que tinha atingido meu objetivo. Muitos lugares estavam a disposição. Mas eu ainda não sabia muito bem como me mover, não havia mouse ou teclado. Sentia-me preso no site de treking no Himalaia. Resolvi experimentar o passeio. Era um mundo totalmente diferente. Diante da ignorância em relação aos meus próprios controles, joguei meu conjunto de bits na primeira trilha que encontrei. Sensação maravilhosa. Não sei se era apenas o navegar de impulsos  elétricos ou as asas da imaginação, mas posso garantir que até frio eu senti. Contudo, alguma coisa estava faltando. Não teria muita graça passear por lugares maravilhosos sem um corpo. Já que o meu tinha virado um punhado de pulsos de energia que eu não podia ver, era necessário procurar um para tomar posse. Ri de mim mesmo e de minhas limitações. Num lugar em que o corpo não é requerido, senti que não era nada sem ele. Mais uma vez, capitulei diante de meus instintos primitivos e meu apego as coisas normais. Olhei para os milhões de caminhos que se colocavam a minha disposição. Fui para o site da Marvel. Escolhi o corpo do dr. Robert Bruce Banner. Isto mesmo, aquele que se transforma em Hulk. Acho que minha escolha foi uma questão  de conveniência e segurança. Para os passeios eu seria o Bruce, nos casos de perigo...Hulk. E ele foi útil muitas vezes. Aquele tal de Norton que insistia em me perseguir teve muito trabalho com ele.
       Voltei para o site de viagens com meu corpinho novo. Paredões imensos, com mais de seis mil metros de altura, davam uma sensação de pequenez que eu nunca tinha experimentado. Acho que fiquei horas passeando por aquele lugar. Era maravilhoso, mas era pouco. Quer dizer, diante das oportunidades que se abriam para mim, uma inimaginável trilha no Nepal era fichinha. Muitas possibilidades, uma enormidade de portas se apresentava cada vez que eu pensava em alguma coisa. Percebi, então, que meu pensamento era meu mouse... e minha vontade o limite. As conexões estavam ali e me permitiam ir a qualquer lugar. Agradeci pela existência da internet, mas eu iria além dela, só ainda não sabia disto.
       Como eu não dominava completamente a habilidade de me auto direcionar, eventualmente  era, como direi, sugado para locais que apenas levemente tinham passado pela minha cabeça. Foi assim que acabei me materializando nas águas do Atlântico, ao norte das Caraíbas, bem no centro do Triângulo do Medo. Fiquei pensando no porquê de ter chegado até ali. Acho que foi em função da lembrança do motivo de minha aventura: Orkut, Contos Fantásticos, Chat, Comentários, Pedro, Triângulo. Era isto. Eu precisava aprender a controlar meus pensamentos. Qualquer deslize e eu voava para outro lugar. Para testar, voltei a pensar nas discussões do chat da comunidade...  Vruuuummm. Atravessei um guarda roupas e acabei dentro de um caldeirão cheio de chocolate e com crianças risonhas a minha volta. Só que isto me confundiu mais ainda. Tudo o que eu visitara até então eram construções de um mundo virtual, como virtual era meu corpo. Mas eu não tinha certeza se o Rubem e o Alexandre, assim como o Pedro, já tinham construído suas histórias  e colocado na rede.  Decidi esquecer o assunto. Eu queria ser dono do que eu poderia ter. Tomar posse do que era meu.
        Após alguns momentos de introspecção para limpar meus pensamentos, pensei num dos sites que eu mais gostava. NASA. No mesmo instante o piso fofo da superfície lunar começou a engolir meus pés. A  Terra é muito linda quando vista da Lua. Armstrong deve ter ficado extasiado. Continuei a explorar as inúmeras possibilidades e vi, literalmente vi, um corredor de energia de um computador diferente e poderoso. As velocidades de processamento e de conexão eram extraordinárias, não era uma máquina comum. Também não era internet, mas estava conectado. Fui até lá e não resisti.  Entrei com tudo na estrada de ondas. Fiquei desmanchado por mais de 18 minutos. Viajei quase 300 milhões de quilômetros naquela frequência de rádio e cheguei a ele. Passei a ver o solo arenoso e avermelhado de Marte de dentro do Curiosity. Eu, Olavo Bruce Banner Hulk, o primeiro homem a por os pés no Planeta Vermelho...quer dizer, as rodas.
          Foram horas maravilhosas. Os caras da agência espacial americana devem ter ficado malucos monitorando o robô com vontade própria. Afinal, era evidente que eu não ia ficar lá trancado dentro daquele jipe de última geração sem fazer nada. Assim que aprendi a tomar conta dos controles do bicho, botei o pé na tábua. Até cavalinho de pau eu dei no centro da grande cratera. Foi um deleite. Depois de algum tempo, me senti cansado. Juro que não sabia que bits sentiam fadiga. Resolvi voltar para casa.
        Não foi difícil achar o caminho de volta. Antes, porém, passei na Marvel e devolvi o Bruce. Grande companheiro que me levou a lugares incríveis, nunca o esquecerei. Enquanto me encaminhava para meu computador, fiquei com medo de que minha mulher tivesse desligado o aparelho. Felizmente isto não tinha acontecido. Minha sala estava lá e continuava escura, como eu tinha deixado. Até os fones continuavam conectados e caídos sobre a cadeira. Fiquei aliviado. Mas, logo a seguir, para meu pânico total, vejo, pelo lado de dentro da tela, meu filho se aproximando e desconectando o plug. Ele sempre faz isto. Pega meus fones sem pedir licença para ouvir música no netbook dele. Só que desta vez ele levou minha porta de saída, meu elo com o mundo exterior. Petrifiquei na hora, puro medo. Passava pela minha mente que nunca mais sairia dali. Mas uma lembrança me aliviou um pouco. Na última vez em que dei bronca no guri por ter pegado minhas coisas, ele jurou que quando terminasse colocaria de volta no lugar. Então seria uma mera questão de tempo. Isto se ele cumprisse a promessa, obviamente. O jeito era esperar. Para passar o tempo, acessei a internet por dentro mesmo, e postei esta história.
         Realmente, a viagem mais fantástica da minha vida.
         E, já que estava na rede e não tinha nada para fazer, resolvi visitar os companheiros de comunidade. De vez em quando dou um pulo lá em casa para ver se os fones já voltaram. Enquanto isto não acontece, fico saltando de conexão em conexão. Portanto, não esqueça, se na próxima vez que você ligar seu computador acontecer uma breve piscada no monitor,  sorria e acene, pois pode ser que seja uma visita minha e eu o esteja vendo pelo lado de dentro da sua tela.