Get me outta here!

sábado, 27 de setembro de 2014

FIORIN - RETÓRICA: A DECOLAGEM DA FIGURA

Retórica
A decolagem da figura
Figuras retóricas são processos de construção do discurso que dominam a vida cotidiana, não só o gênero poético

JOSÉ LUIZ FIORIN

Montagem sobre o Cristo Redentor estampa a capa da revista The Economist : misto de metáfora e metonímia para retratar a ascensão do Brasil

No dia 14 de dezembro de 1968, o Jornal do Brasil trazia, na primeira página, a notícia mais importante do dia: na véspera, fora baixado o Ato Institucional nº 5, que exacerbava a ditadura em que o país vivia desde 1964. A manchete, no alto da página, era a seguinte: Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado. Na coluna mais à esquerda, aparecia o texto do Ato expedido pelo presidente Médici. Sobre ele, havia um círculo branco e dentro, um retângulo cercado por linhas negras com o seguinte texto: 
"Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras."
Observe-se que, no contexto discursivo, o texto sobre o clima é uma metáfora do ambiente político que reinava no Brasil. Há uma analogia sêmica entre os elementos que servem para a descrição do clima (tempo negro, temperatura sufocante, ar irrespirável, ventos fortes, etc.) e do ambiente político. Isso mostra que a metáfora e a metonímia são processos de construção discursiva.
Como explica Jakobson, todos os processos simbólicos humanos, sejam eles sociais ou individuais, organizam-se metafórica e metonimicamente. Vejam-se, por exemplo, os processos miraculosos ou mágicos de cura ou de malfeitos. Na Bíblia, relata-se muitas vezes que Cristo cura tocando alguém, um cego, por exemplo. É um processo de contágio ou de contiguidade. Por isso, poderia ser chamado metonímico. Certos povos africanos têm um procedimento de magia chamado imitativo. Por exemplo, enfiam-se agulhas num órgão de um boneco que faz as vezes de uma dada pessoa. Acredita-se que a parte do organismo representada será atingida. Trata-se de um procedimento metafórico, porque trabalha com a semelhança entre o boneco e a pessoa e o órgão do boneco e da pessoa.

Agatha Christie criou dois detetives que têm grande importância em sua obra porque aparecem como figuras-chave em vários romances: Poirot e Miss Marple. O processo de descoberta dos dois é completamente diverso. O de Poirot é metonímico: a partir de um dado indício (parte), ele reconstrói o crime, por meio de uma série de implicações. O de Miss Marple é metafórico: ela percebe analogias entre o crime que está investigando e outro já ocorrido. Termina afirmando que o mal é sempre igual. Será que poderíamos tirar conclusões sobre os estereótipos sociais a respeito dos papéis tradicionais da mulher e do homem, quando vemos, na obra da escritora inglesa, que este raciocina por implicações e aquela, por analogia?
           
           Manchete : crítica velada à ditadura sob metáfora do clima
Não devemos pensar que a metáfora e a metonímia aparecem apenas nos gêneros poéticos. Ao contrário, os gêneros da vida cotidiana estão repletos de conotações: ele é difícil de engolir, ferver de raiva, estamos num beco sem saída, ter o rei na barriga, trânsito engarrafado . Não prestamos mais atenção ao valor conotado dessas expressões. Quando se observa a história da língua, por exemplo, nota-se que quase todas as palavras têm sentidos oriundos de conotações. "Candidato" vem do latim candidus, que quer dizer "branco brilhante". "Candidato" passou a significar "postulante a um cargo, emprego, honraria, etc.", porque, em Roma, os aspirantes aos cargos eletivos vestiam toga branca. Não percebemos mais as palavras e expressões conotadas em nossa língua, mas somos muito sensíveis à conotação, quando aprendemos outra língua. Um estrangeiro que não esteja acostumado às expressões conotadas e cristalizadas num determinado idioma faz rir ao substituir um de seus componentes por um sinônimo: "descascar o ananás" em lugar de "descascar o abacaxi"; "mercado preto" por "mercado negro"; "tapete rolante" em vez de "esteira rolante". Cada língua conota diferentemente e, por isso, a maneira de ver o mundo varia de uma para outra.

    Açúcar 

       Jakobson nota que "toda metonímia é ligeiramente metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico" (1969, p. 149). Isso quer dizer que a uma metáfora subjaz uma predicação metonímica e sob uma metonímia há uma relação metafórica.
No conto "A aia", de Eça de Queirós, quando se fala dos temores da rainha viúva de que seu reino fosse invadido, aparece a frase: "Uma roca não governa como uma espada", que tem o valor semântico de "Uma mulher não governa como um homem". Trata-se de uma metonímia, porque "roca", por ser um instrumento considerado típico do trabalho feminino, significa "mulher", enquanto "espada", por referir-se a uma atividade tida como masculina, quer dizer "homem". Há uma transferência de valor semântico do instrumento para o autor. No entanto, há uma concentração sêmica num traço comum aos dois termos coexistentes: roca e mulher e espada e homem. Esse traço é masculino e feminino respectivamente. Essa é o elemento metafórico da metonímia.
Em Sem Açúcar , de Chico Buarque aparecem as seguintes metáforas: Sua boca é um cadeado/ E meu corpo é uma fogueira. Elas indicam o silêncio do homem e a paixão da mulher. Trata-se de metáforas, porque há um traço comum entre o cadeado e o silêncio, que é o fechamento, e entre a fogueira e a paixão, que é o ardor, a exaltação. No entanto, o cadeado é o instrumento da ação de fechar, o que significa que há uma transferência sêmica, que tem um valor metonímico; a fogueira é a causa do ardor, que é seu efeito, o que indica também a presença de um matiz metonímico na metáfora.

A revista The Economist , de 12 de novembro de 2009, fez uma reportagem de capa sobre o Brasil. Trata-se de uma metáfora, porque entre o foguete e o Brasil há um traço sêmico comum: a decolagem, a ascensão. No entanto, essa metáfora está fundada numa metonímia: o Cristo Redentor é o foguete que significa o Brasil. O objeto que caracteriza um lugar denota esse lugar. 

José Luiz Fiorin
 é professor do Departamento de Linguística da USP e autor de As astúcias da enunciação   

0 comentários:

Postar um comentário