Retórica
A decolagem da figura
Figuras retóricas são processos de construção do discurso que
dominam a vida cotidiana, não só o gênero poético
JOSÉ LUIZ FIORIN
Montagem sobre o Cristo Redentor estampa a capa
da revista The Economist :
misto de metáfora e metonímia para retratar a ascensão do Brasil
No dia 14 de dezembro de 1968, o Jornal do Brasil trazia,
na primeira página, a notícia mais importante do dia: na véspera, fora baixado
o Ato Institucional nº 5, que exacerbava a ditadura em que o país vivia desde
1964. A manchete, no alto da página, era a seguinte: Governo baixa Ato
Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado. Na coluna mais
à esquerda, aparecia o texto do Ato expedido pelo presidente Médici. Sobre ele,
havia um círculo branco e dentro, um retângulo cercado por linhas negras com o
seguinte texto:
"Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável.
O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º,
nas Laranjeiras."
Observe-se que, no contexto discursivo, o texto sobre o clima é
uma metáfora do ambiente político que reinava no Brasil. Há uma analogia sêmica
entre os elementos que servem para a descrição do clima (tempo negro,
temperatura sufocante, ar irrespirável, ventos fortes, etc.) e do ambiente
político. Isso mostra que a metáfora e a metonímia são processos de construção
discursiva.
Como explica Jakobson, todos os processos simbólicos humanos,
sejam eles sociais ou individuais, organizam-se metafórica e metonimicamente.
Vejam-se, por exemplo, os processos miraculosos ou mágicos de cura ou de
malfeitos. Na Bíblia, relata-se muitas vezes que Cristo cura tocando alguém, um
cego, por exemplo. É um processo de contágio ou de contiguidade. Por isso,
poderia ser chamado metonímico. Certos povos africanos têm um procedimento de
magia chamado imitativo. Por exemplo, enfiam-se agulhas num órgão de um boneco
que faz as vezes de uma dada pessoa. Acredita-se que a parte do organismo
representada será atingida. Trata-se de um procedimento metafórico, porque
trabalha com a semelhança entre o boneco e a pessoa e o órgão do boneco e da
pessoa.
Agatha Christie criou dois detetives que têm grande importância em
sua obra porque aparecem como figuras-chave em vários romances: Poirot e Miss
Marple. O processo de descoberta dos dois é completamente diverso. O de Poirot
é metonímico: a partir de um dado indício (parte), ele reconstrói o crime, por
meio de uma série de implicações. O de Miss Marple é metafórico: ela percebe
analogias entre o crime que está investigando e outro já ocorrido. Termina
afirmando que o mal é sempre igual. Será que poderíamos tirar conclusões sobre
os estereótipos sociais a respeito dos papéis tradicionais da mulher e do
homem, quando vemos, na obra da escritora inglesa, que este raciocina por
implicações e aquela, por analogia?
Manchete : crítica velada à ditadura sob metáfora do clima
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Não devemos pensar que a
metáfora e a metonímia aparecem apenas nos gêneros poéticos. Ao contrário, os
gêneros da vida cotidiana estão repletos de conotações: ele é difícil de engolir, ferver de raiva, estamos num beco sem saída, ter
o rei na barriga, trânsito engarrafado .
Não prestamos mais atenção ao valor conotado dessas expressões. Quando se
observa a história da língua, por exemplo, nota-se que quase todas as palavras
têm sentidos oriundos de conotações. "Candidato" vem do latim
candidus, que quer dizer "branco brilhante". "Candidato"
passou a significar "postulante a um cargo, emprego, honraria, etc.",
porque, em Roma, os aspirantes aos cargos eletivos vestiam toga branca. Não
percebemos mais as palavras e expressões conotadas em nossa língua, mas somos
muito sensíveis à conotação, quando aprendemos outra língua. Um estrangeiro que
não esteja acostumado às expressões conotadas e cristalizadas num determinado
idioma faz rir ao substituir um de seus componentes por um sinônimo:
"descascar o ananás" em lugar de "descascar o abacaxi";
"mercado preto" por "mercado negro"; "tapete
rolante" em vez de "esteira rolante". Cada língua conota
diferentemente e, por isso, a maneira de ver o mundo varia de uma para outra.
Açúcar
No conto "A aia", de Eça de Queirós, quando se fala dos
temores da rainha viúva de que seu reino fosse invadido, aparece a frase:
"Uma roca não governa como uma espada", que tem o valor semântico de
"Uma mulher não governa como um homem". Trata-se de uma metonímia,
porque "roca", por ser um instrumento considerado típico do trabalho
feminino, significa "mulher", enquanto "espada", por
referir-se a uma atividade tida como masculina, quer dizer "homem".
Há uma transferência de valor semântico do instrumento para o autor. No
entanto, há uma concentração sêmica num traço comum aos dois termos
coexistentes: roca e mulher e espada e homem. Esse traço é masculino e feminino
respectivamente. Essa é o elemento metafórico da metonímia.
Em Sem Açúcar , de Chico Buarque aparecem as
seguintes metáforas: Sua boca é um cadeado/ E meu corpo é uma fogueira. Elas
indicam o silêncio do homem e a paixão da mulher. Trata-se de metáforas, porque
há um traço comum entre o cadeado e o silêncio, que é o fechamento, e entre a
fogueira e a paixão, que é o ardor, a exaltação. No entanto, o cadeado é o
instrumento da ação de fechar, o que significa que há uma transferência sêmica,
que tem um valor metonímico; a fogueira é a causa do ardor, que é seu efeito, o
que indica também a presença de um matiz metonímico na metáfora.
A revista The Economist , de 12 de novembro de 2009, fez uma reportagem de capa sobre o Brasil. Trata-se de uma metáfora, porque entre o foguete e o Brasil há um traço sêmico comum: a decolagem, a ascensão. No entanto, essa metáfora está fundada numa metonímia: o Cristo Redentor é o foguete que significa o Brasil. O objeto que caracteriza um lugar denota esse lugar.
José Luiz Fiorin é professor do Departamento de Linguística da USP e autor de As astúcias da enunciação
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