O GRILO VERDE
Adaptação
António Mota
O grilo verde
Porto, Ambar, 1999
António Mota
O grilo verde
Porto, Ambar, 1999
Certo
dia, apareceu na horta do Tio Manuel Liró um grilo espantoso. Era verde, tão
verde como as alfaces repolhudas que cresciam num pequeno canteiro ao cimo da
horta. E em dias de sol e noites estreladas, punha-se a assobiar modinhas.
Os
grilos que viviam por perto, como não eram verdes nem sabiam assobiar, acharam
aquele vizinho esquisito, muito invulgar. Foram contar aos colegas que moravam
por aquelas redondezas.
—
VERDE?!
— E
ASSOBIA?!… PODE LÁ SER!
A
notícia espalhou-se, andou de toca em toca, voou de lura em lura. Todos os
grilos ficaram a saber das afrontas do parceiro que morava na horta do Tio
Manuel Liró. Sim, afrontas! Ser-se verde e assobiador não eram coisas de grilo
que se fizessem… Resolveram fazer-lhe uma visita para o convencer a mudar de
farda e de música.
Numa
tarde de domingo deixaram as luras que tinham nos quintais, campos, bouças e
matas. Entraram na horta do Tio Manuel Liró e perguntaram ao companheiro:
—
Porque não tens uma cor igual à nossa? Porque não cricrilas?
Então
o Grilo Verde respondeu-lhes:
— Se
nasci verde, não posso ser preto. E se assobio é porque não sei fazer outra
coisa. E vós — perguntou — porque não sois verdes e não sabeis assobiar como
eu?
—
Porque sempre fomos pretos e só sabemos cricrilar.
—
Então — concluiu o Grilo Verde — estamos empatados: se eu sou verde — vós sois
pretos; se assobio — vós cricrilais. Para quê tanta preocupação?
—
Alto lá! — reagiram os grilos pretos — Esqueces-te que és o primeiro colega a
fazer tamanhos disparates!
— E
não será disparate ter cor preta e cricrilar?
— Não
venhas com bazófia. Por acaso já pensaste na confusão que vais criar?
—
Confusão!? — espantou-se o Grilo Verde — Eu?!…
— Já
pensaste que, se por acaso os homens te vêem, vão logo dizer aos seus amigos
que há grilos que não são pretos e grilos que assobiam. Já pensaste nisso? E
por tua causa todos os grilos do Mundo ficam desacreditados!
— Não
vejo mal nisso… Mas dizei-me — pediu o Grilo Verde — o que devo fazer?
—
Deves mudar de cor e nunca mais, mas nunca, nunca mais assobiar, entendido?
O
Grilo Verde ficou calado, pensativo.
—
Ides desculpar — disse ele — mas não posso fazer o que me pedis.
—
Pensa bem…
— Já
pensei o que devia pensar, e volto a dizer que estais a pedir coisas
impossíveis, coisas malucas. Cada um é como é…
—
Então — decidiram os grilos pretos — somos obrigados a agir imediatamente para
remediar o equívoco: vamos prender-te.
—
Prender-me?
—
Sim, caro colega. Serás metido na lura mais funda que conseguirmos fazer.
Ninguém mais verá esse ridículo verde da tua pele, ninguém mais escutará essas
estúpidas modinhas que assobias… Descansa, fome não passarás, haverá sempre à
tua disposição alface e senradela com fartura.
O
Grilo Verde olhou à sua volta e ficou desesperado: eram tantos os grilos pretos
a rodeá-lo… como poderia escapar?
— Não
vos passou pela cabeça — disse o Grilo Verde — que ides fazer uma coisa
estúpida, praticar uma grande injustiça? Que mal vos fiz? Governo a minha vida
como qualquer grilo e dou umas assobiadelas. Onde está o mal, dizei-me?!
— Ó
coleguinha! Estás a esquecer um assunto demasiado importante para todos nós: A
NOSSA REPUTAÇÃO!
—
RE-PU-TA-ÇÃO? O que é isso?!… — admirou-se o Grilo Verde.
— É o
nome, a fama, a tradição, a reputação! Os grilos sempre foram pretos e nunca
deixaram de cricrilar!
— E o
nome, a fama, a tradição e a reputação dos grilos também diz que se deve
prender os que não são pretos nem sabem cricrilar? — perguntou o Grilo Verde.
— Não
venhas com conversa fiada, nem tentes baralhar-nos as ideias. Prepara-te para
partires connosco.
Os
grilos pretos começaram a fazer um cerco cada vez mais apertado ao colega
vestido de verde — e este, quando se viu muito entrasgado, desatou aos saltos,
tentando fugir.
—
Agarra que é verde! Apanha o assobiador! Cri-cri-cri-cri — E os grilos pretos
saltavam, pulavam, caíam. O Grilo Verde, esse fugia para um lado, fintava um
colega, saía para o lado contrário, dava um salto e fintava outro.
— Ai
a minha vida! Ai que lá vou para a toca funda — mas o Grilo Verde fugia sempre,
sempre — cada vez mais aflito, mais cercado, mais cansado…
E se
o Tio Manuel Liró não entrasse na horta a tempo de escorraçar os grilos pretos,
certamente o Grilo Verde seria apanhado pelos colegas e de seguida metido numa
lura funda.
Eu
conto como tudo se passou.
Nas
tardes de sol, o Tio Manuel Liró costumava ir sentar-se sob a sombra de uma
oliveira ramalhuda que havia ao fundo da horta, para ler o jornal, e por fim
dormir uma pacífica soneca! Ora, nessa tarde de domingo, o Tio Manuel Liró
entrou na horta e, como de costume, foi sentar-se à sombra da oliveira,
ignorando que havia visitantes por perto. Abriu o jornal, leu as palavras de
letras gordas com muita atenção. Depois virou a página e começou a ler as
letras mais pequenas. Mas essas letras, como eram pequenas, gostavam de
brincar: punham-se a dar saltinhos de um lado para o outro, pulavam para cima e
para baixo, faziam danças de roda… E os olhos do Tio Manuel, que já estavam um
pouco cansados, não acharam piada nenhuma àquelas letras brincalhonas —
fecharam-se. O sono, que rondava por perto, aproveitou a ocasião e, rápido,
enfiou-se no corpo do Tio Manuel Liró.
Mas
foi por pouco tempo. Era grande, muito grande a barulheira que os grilos
faziam. E o sono, que detesta barulho, fugiu em grande velocidade.
O Tio
Manuel Liró acordou estremunhado.
—
Raio de grilos! Que barulho, santo Deus!… Calai-vos, desafinados duma cana!
Todavia,
os grilos continuavam a fazer grande algazarra, indiferentes à zanga do dono da
horta.
—
Calai-vos! — gritou o Tio Manuel Liró. E a barulheira continuava…
— Ai
sim! Então esperai pelas alfaces… esperai.
Zangado,
estremunhado, o Tio Manuel Liró levantou-se, atirou o jornal ao chão e, correndo,
atravessou a horta.
Voltou
daí a momentos com uma grande enxada nas mãos. Sem fazer barulho começou a
percorrer a horta, talho por talho, tentando localizar os importunadores
barulhentos.
E
tanto andou, tanto rebuscou, que conseguiu descobrir o paradeiro deles. Mas, ó
grande azar, ó pouca sorte! Onde é que os grilos haviam de estar metidos? — No
meio do feijoal, no talho dos seus viçosos feijoeiros…
«E
agora, Manuel? — pôs-se o velho Manuel Liró a pensar.
—
Desfaço ou não desfaço? Se desfaço o feijoal e espanto os grilos para longe
daqui, passo a dormir descansado. Mas, se não desfaço os feijoeiros e não
espanto os grilos, jamais dormirei uma soneca em paz. E agora, o que faço?».
O Tio
Manuel pensou, matutou, ponderou e finalmente decidiu:
—
Guerra aos grilos! Nem mais um cri-cri na minha horta! Quero dormir descansado.
Fora! Fora daqui, seus casacas! — E, pegando na enxada, pôs-se o Tio Manuel a
cavar o talho, a arrancar os feijoeiros, a cortar as vagens, a desfazer os
feijões…
Os
grilos pretos mal viram aquele pedaço de ferro afiado a arrasar tudo, tiveram
medo, esqueceram-se de dar caça ao colega verde e tentaram escapar-se, fugindo
ligeirinhos, mais lestos que saltaricos.
E o
Grilo Verde? Esse, empoleirou-se numa couve, e dando um suspiro de alívio,
escondeu-se entre as suas folhas verdes, tenras e largas, deixando-se estar
quieto, caladinho.
E o
Tio Manuel Liró continuou a cavar o talho, mexendo-o de ponta a ponta. Grilos
não viu. E voltou a cavar, cada vez mais furioso. Cavou, cavou, estrangalhou,
revirou a terra e voltou a revirar… Mas como podiam aparecer grilos se já
tinham dado à pata?!
Transpirado,
corado, aborrecido, enervado, fatigado, o Tio Manuel Liró pensou: «Foram-se os
grilos e foi-se o feijoal».
Exausto,
voltou para a sombra da oliveira. Pegou no jornal, leu novamente as palavras de
letras gordas, virou a folha, suspirou três vezes, esqueceu o incidente, fechou
os olhos e adormeceu.
E foi
então que se deu um caso extraordinário, só estando lá para ver e pasmar:
Enquanto
o Tio Manuel dormia a sua soneca, cresceram umas grandes asas cor de fogo no
corpo do Grilo Verde. E este, saindo da couve onde estava empoleirado, começou
a voar à roda da horta, por cima dos talhos. Depois subiu e foi poisar no ramo
mais alto da oliveira, enquanto assobiava uma bela e estranha melodia.
O Tio
Manuel acordou de mansinho ao som da música.
«Mas
que belíssima melodia! Onde está o seu executante?», pôs-se o dono da horta a
pensar, enquanto olhava para todos os lados, atento, admirado.
A
música vinha de cima, dos ramos da oliveira, mas não se via nada!
—
Quem assobia tão bem que faça o favor de descer e de se mostrar para que eu o
felicite — pediu o Tio Manuel Liró.
Então
o Grilo Verde desceu da oliveira, voando com as suas asas cor de fogo, e
mostrou-se ao dono da horta.
— Que
bicho tão estranho tu és! Pareces uma borboleta, mas assobias maravilhosamente…
Também és parecido com um grilo… mas és verde! És tão estranho!… Espera aí! — E
o Tio Manuel pensou apanhar o Grilo Verde e levá-lo consigo para mostrar aos
amigos. Mas, quando estendeu os braços e abriu as mãos para o apanhar, o Grilo
Verde escapou-se e de imediato começou a subir no céu azul.
Foi
subindo, subindo e assobiando aquela bela e estranha melodia, até que, e para
espanto do Tio Manuel Liró, o Grilo Verde desapareceu entre um castelo de
nuvens, voando, voando com as suas asas cor de fogo.
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