O ATOR
Veríssimo,
Luis Fernando.
Comédias
da vida privada: crônicas escolhidas.
19. Ed.
Porto Alegre: L&PM,
1996. P. 194-95.
O
Homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os filhos,
alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para jantar e
dirige-se para o seu quarto. Vai tomar banho, trocar de roupa e preparar-se
para algumas horas de sossego na frente da televisão antes de dormir.
Quando
está abrindo a porta do seu quarto ouve uma voz que grita:
-
Corta!
O
homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é sua casa, é um
cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta das suas mãos. Uma mulher vem ver
se a sua maquiagem está bem e põe um pouco de pó em seu nariz. Aproxima-se um
homem com um script na mão dizendo que ele errou uma das falas na hora de
beijar as crianças.
- O
que é isso? – pergunta o homem. – Quem são vocês? O que estão fazendo dentro da
minha casa? Que luzes são essas?
- O
quê, enlouqueceu? – pergunta o diretor.
–
Vamos ter que repetir a cena. Eu sei que você está cansado, mas...
Estou
cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar meu pijama. Saiam da minha
casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos! Saiam!
O
diretor fica de boca aberta. Toda a equipe fica em silêncio, olhando para o
ator. Finalmente o diretor levanta a mão e diz:
-
Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um pouquinho e ...
-
Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha... A minha família! O
que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Os meus filhos! O homem sai correndo
entre os fios e os refletores, à procura da família.
O
diretor e um assistente tentam segurá-lo. E, então, ouve-se uma voz que grita:
-
Corta! Aproxima-se outro homem com um script na mão. O homem descobre que o
cenário, na verdade, é um cenário.
O
homem com um script na mão diz:
-
Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.
- Quê!?
- quem é você?
-
Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem que
transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega em casa e descobre que
sua casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no meio de um filme.
Não entende nada.
- Não
entendo... - Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não.
- Eu
devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde está minha mulher? Os
meus filhos? A minha casa?
-
Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar. Volte para sua marca.
Atenção, lues...
- Mas
que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou eu! Ninguém me dirige. Eu estou
na minha própria casa, dizendo as minhas próprias falas...
-
Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está bom.
- Que
script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é filme. E mais,
se é um filme, é uma porcaria de filme. Isto é simbolismo ultrapassado. Essa de
que o mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que
atores... Porcaria!
-
Boa, boa. Está convincente. Mas espere começar a filmar. Atenção...
O
homem agarra o diretor pela frente da camisa.
-
Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha casa.
O
diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouve-se uma voz que
grita:
-
Corta!
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