O Banheiro
Millôr Fernandes
"Quem aumenta seu conhecimento aumenta a sua dor"
(Eclesiastes, I, 18)
Não é o lar o último recesso do homem civilizado,
sua última fuga, o derradeiro recanto em que pode esconder suas mágoas e dores.
Não é o lar o castelo do homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo
atribulado, numa época convulsa, numa sociedade desgovernada, numa família
dissolvida ou dissoluta só o banheiro é um recanto livre, só essa dependência
da casa e do mundo dá ao homem um hausto de tranqüilidade. É ali que ele sonha
suas derradeiras filosofias e seus moribundos cálculos de paz e sossego.
Outrora, em outras eras do mundo, havia jardins livres, particulares e
públicos, onde o homem podia se entregar à sua meditação e à sua prece.
Desapareceram os jardins particulares, pois o homem passou a viver montado em
lajes, tendo como ilusão de floresta duas ou três plantas enlatadas que não são
bastante grandes para ocultar seu corpo da fúria destrutiva da proximidade
forçada de outros homens. Não encontrando mais as imensidões das praças romanas
que lhe davam um sentido de solidão, não tendo mais os desertos, hoje saneados,
irrigados e povoados, faltando-lhe as grutas dos companheiros de Chico de
Assis, onde era possível refletir e ponderar, concluir e amadurecer, o homem
foi recuando, desesperou e só obteve um instante de calma no dia em que de novo
descobriu seu santuário dentro de sua própria casa — o banheiro. Se não lhe
batem à porta outros homens (pois um lar por definição é composto de mulher,
marido, filho, filha e um outro parente, próximo ou remoto, todos com suas
necessidades físicas e morais) ele, ali e só ali, por alguns instantes, se
oculta, se introspecciona, se reflete, se calcula e julga. Está só consigo
mesmo, tudo é segredo, ninguém o interroga, pressiona, compele, tenta, sugere,
assalta, Aqui é que o chefe da casa, à altura dos quarenta anos, olha os
cabelos grisalhos, os claros da fronte, e reflete, sem testemunhas nem
cúmplices, sobre os objetivos negativos da existência que o estão conduzindo —
embora altamente bem sucedido na vida prática — a essa lenta degradação física.
Examina com calma sua fisionomia, põe-se de perfil, verifica o grau de sua
obesidade, reflete sobre vãs glórias passadas e decide encerrar definitivamente
suas pretensões sentimentais, ânsia cada vez maior e mais constante num mundo
encharcado de instabilidade. É nesse mesmo banheiro que o filho de vinte anos
examina a vaidade de seus músculos, vê que deve trabalhar um pouco mais seus peitorais, ensaia
seu sorriso de canto de boca, fica com um olhar sério e profundo que pretende
usar mais tarde naquela senhora mais velha do que ele mas ainda cheia de
encantos e promessas. É aqui que a filha de 17 anos vem ler a carta secreta que
recebeu do primo, cujos sentimentos são insuspeitados pelo resto da família. Já
leu a carta antes, em vários lugares, mas aqui tem o tempo e a solidão necessários
para degustá-la e suspirá-la. É aqui também que ela vem verificar certo detalhe
físico que foi comentado na rua, quando passava por um grupo de operários de
obras, comentário que na hora ela ouviu com um misto de horror e desprezo. É
aqui que a dona de casa, a mãe de família, um tanto consumida pelos anos, vem
chorar silenciosamente, no dia em que descobre ou suspeita de uma infidelidade,
erro ou intenção insensata da parte do marido, filho, filha, irmãos. Aqui
ninguém a surpreenderá, pode amargurar-se até aos soluços e sair, depois de
alguns momentos, pronta e tranqüila, com a alma lavada e o rosto idem, para
enfrentar sorridente os outros misteriosos e distantes seres que vivem no mesmo
lar.
Não há, em suma, quem
não tenha jamais feito uma careta equívoca no espelho do banheiro nem existe
ninguém que nunca tenha tido um pensamento genial ao sentir sobre seu corpo o
primeiro jato de água fria. Aqui temos a paz para a autocrítica, a nudez
necessária para o frustrado sentimento de que nossos corpos não foram feitos
para a ambição de nossas almas, aqui entramos sujos e saímos limpos, aqui nos
melhoramos o pouco que nos é dado melhorar, saímos mais frescos, mais puros,
mais bem dispostos. O banheiro é o que resta de indevassável para a alma e o
corpo do homem e queira Deus que Le Corbusier ou Niemeyer não pensem em fazê-lo
também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma humanidade cada vez
mais gregária, sem o necessário e apaixonante sentimento de solidão ocasional.
Aqui, neste palco em que somos os únicos atores e espectadores, neste templo
que serve ao mesmo tempo ao deus do narcisismo e ao da humildade, é que a
civilização hodierna encontrará sua máxima expressão, seu último espelho — que
é o propriamente dito.
Xantipa, que diabo, me
joga essa toalha!
"Minha especialidade e meu orgulho: sou o maior leigo do país."
(O Autor)
Millôr Fernandes, ou Emmanuel Vão Gôgo, nosso grande humorista, pensador, chargista, tradutor, escritor, teatrólogo, jornalista, pintor, é figura indispensável quando se fala de inteligência nacional. O texto acima extraímos de "Lições de um ignorante", José Álvaro Editor - Rio de Janeiro, 1967, pág. 17.
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