O RÁDIO
Raquel de Queirós
Sei que o homem desembarcar na Lua foi o
fato mais importante do século – e quem sabe até da história do mundo. Mas a
divulgação do rádio transistor teve um alcance muito maior, em sentido
imediato.
Não conheço outra criação do progresso que
possuísse tal capacidade de penetração nem fosse tão rapidamente aceita pelas
populações mais atrasadas. Máquina de costura, luz elétrica, agulha de injeção,
tudo isso espalhou-se depressa e profundamente – mas não chega aos pés do rádio
de pilha. Até do motor a explosão, o rádio ganha, por causa da sua
acessibilidade. Todo o mundo pode sonhar com um carro, até índio – mas adquiri-lo
já é outra coisa. Enquanto o rádio está praticamente ao alcance de todos – até
do índio, também.
No sertão mais escondido, em barrancas
secretas de rio por Amazonas e Goiás, em serranias perdidas, em campinas longe
do mundo, se a gente avista uma casa de caboclo, de colono, de pioneiro
emigrante, nove casos em cada dez, verá, por cima do telhado rústico, de
cumeeira a cumeeira, o fio de cobre da antena do rádio. Dentro da casa haverá
um tamborete, um pote, um fogão de barro, nada mais. Porém em cima de um
caixote improvisado em mesa, trepado num caritó na parede da sala, quase
infalivelmente você verá um rádio. Tocando o dia inteiro as suas musiquinhas de
dois vinténs (e por isso matando a velha e preciosa música folclórica),
espalhando notícias e – essa, sim, é a sua contribuição mais importante –
servindo de elo de ligação entre populações distantes que não têm entre si
outro veículo de comunicação, dando recados, pedindo notícias, acusando cartas,
servindo de correio gracioso aos que não têm outro correio ou, tendo-o, não
sabem como usá-lo.
Rara é a estação de interior – rara não,
acho que não há mesmo nenhuma que deixe de ter a sua "hora sertaneja"
ou "alô, sertão", ou "mande o seu recado", ou outro
programa equivalente. E comove a gente ouvir o trançado das informações e
avisos – "Dona Maria de Tal, fazenda Carnaúba, sua filha mandou dizer que
o menino operou-se e vai se salvar". "Seu Raimundinho Nonato, do sítio
Pacavira, avisa à família que perdeu o trem ontem e agora só pode ir na semana
que vem." "Rosélia do Putuí, Baturité, avisa aos irmãos Ribamar e
Vicente, na Barra do Ceará, que a mãe faleceu repentinamente, o enterro é hoje
mesmo."
A princípio se estranha como é que chegam a
destino aquelas comunicações perdidas, sem horário certo. Depois se entende –
os rádios estão sempre ligados, sempre tem em casa uma pessoa que escuta os
recados. Ao ouvir um nome conhecido, arrebita a orelha, presta a atenção e passa
adiante o recado a quem interessa. É raríssimo perder-se um comunicado ou
chegar ele com atraso. Sempre alguém por perto escutou.
E pode faltar na casa o dinheiro para o fumo ou o café, para a rede nova, para o corte de pano da mulher, mas não faltará para o carrego do rádio – ou seja, carga de pilhas do aparelho. E também, sendo o rádio objeto de tão indispensável presença em todos os lares, e sendo quase sempre escasso o dinheiro em moeda corrente, os rádios são negociados nas barganhas mais singulares: um rádio novo por dois bacorinhos, um saco de milho e meia arroba de algodão; um rádio velho, já passado por muitas mãos, por um amarrado de frangos e um relógio de pulso com corda quebrada; um rádio ainda mais ou menos por tantos dias de serviço, uma lanterna de pilha, sem carrego e uma ninhada de ovos de galinha indiana... Qualquer negócio vale, contanto que o rádio venha; pois é da nossa natureza, mesmo entre os mais esquecidos e abandonados dos seres, esse desejo e esse orgulho de pertencer – (nem que seja através de uma voz distante dentro de uma caixa de plástico) –, de fazer parte, de se integrar na comunhão dos homens.
© 2008 Fernando
Morgado. Todos os direitos reservados
"O Rádio", de Rachel de Queiroz.
Publicado na última página da edição de 22/5/1974 da revista <em>O
Cruzeiro. O texto revela a visão pessoal dessa grande escritora sobre o impacto
do rádio na vida das pessoas, principalmente no interior do Brasil.
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