A VELHINHA QUE NOS ULTRAPASSA
MOACYR SCLIAR
Sou um médico de saúde pública e pratico
rigorosamente aquilo que a saúde pública recomenda. Exercício físico, por
exemplo. Faço todos os dias, inclusive em viagem: tênis, calção e camiseta
(junto com livros e laptop) não podem
faltar na bagagem. Muitos hotéis têm os fitness
rooms, academias, o que facilita as coisas. Se não há academia, caminho –
no parque, na rua, onde der. Fiquei assim conhecendo numerosos lugares de
andarilhos: o aterro do Flamengo e os jardins do Catete, no Rio, o fantástico
parque de Brasília, o Central Park de Nova York, as avenidas da orla marítima
nas cidades do Nordeste. Belas paisagens, trajetos novos: uma experiência
gratificante. Retificando: é gratificante até que a velhinha me ultrapassa.
Seja qual for o lugar, ela sempre aparece.
È uma senhora de muita idade, gordinha ou magra, alta ou baixa, vestida de
forma simples ou aparece ou sofisticada. De qualquer forma, a velhinha sempre
aparece. e aparece me ultrapassando
É, como vocês podem imaginar, uma surpresa
desagradável. Porque, e de novo de acordo com as regras, procuro caminhar o
mais rápido possível. A regra da Organização Mundial da Saúde fala em brisk walk, passo estugado; e brisk eu sou, tão brisk quanto posso sê-lo. Mas a velhinha é mais brisk do que eu. Com surpreendente
desenvoltura, ela me ultrapassa, e quando me recupero do susto já está algumas
dezenas de metros à frente.
Eu sei que é puro preconceito – preconceito
(machista?) contra mulheres, preconceito contra senhoras idosas -,mas não posso
deixar de me sentir profundamente contrariado e humilhado. Como é possível
acontecer tal coisa? Como é que um cara que faz exercício físico há tanto tempo
e que, portanto, deveria estar em forma é tão ingloriamente e fragorosamente
derrotado?
Não adianta fazer especulações. Não adianta
supor que a velhinha está dopada, e que breve está suspensa de qualquer
competição (e de qualquer caminhada). O certo é que o fato acabou de acontecer,
a pergunta que surge de imediato é: o que fazer agora?
A sabedoria aconselharia a aceitar a coisa
com o chamado espírito esportivo. Mas o espírito esportivo parece ter
desaparecido – dos estádios de futebol e dos lugares de caminhada. Reagir é que
brada, de imediato, o troglodita que todos temos dentro de nós, e que em
priscas eras apostava corrida com dinossauros.
De modo que reajo. Aperto o passo, torno-o
mais brisk e ultrapasso a velhinha.
Feito o quê, tranqüilizado, volto ao ritmo normal. E o incidente já está quase
esquecido, de novo a velhinha me ultrapassa.
Fica então claro que só apressar a marcha
não resolve. É preciso recorrer a medidas mais drásticas, o mesmo raciocínio
que volta e meia ocorre ao Bush. Se marcha acelerada não é suficiente, o negócio é correr.
Aparentemente, nenhum problema nisso. São
muitos os que correm, nas ruas, nas praças, nos parques. Mas quem corre corre,
e quem caminha caminha. São duas formas de fazer exercícios; são dois modos de
vida e a honestidade diz que é preciso optar por uma coisa ou por outra. O
desespero, contudo, nos transtorna e, para evitar a derrota, fazemos, como os
políticos, qualquer coisa. Começo pois, a correr e ultrapasso a velhinha. Conseguido
o objetivo, volto ao ritmo normal.
Cinco minutos depois ela me ultrapassa de
novo. Não precisou correr para fazê-lo. Simplesmente continuou a marcha, com a determinação
de sempre.
Como eu disse, não sei quem é esta senhora.
Mas quando ela se candidatar à presidência votem nela. Ou arquem com a amargura
da derrota.
contos e crônicas para ler na escola(pg. 91 a 93)
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