PELE DE BODE
FOLCLORE RUSSO
Era uma vez um velho e uma velha. Eram camponeses, e
muito pobres. Passaram a vida inteira na maior miséria, comendo pouco num dia e
nada nos dois dias seguintes. Até que certa manhã a velha morreu, deixando o
velho muito aflito, pois não tinha nem como enterrar a mulher.
Então o velho mujique se arrastou até a
casa do cura da aldeia, um Pope conhecido pela sua avareza, Cumprimentou-o
humildemente e pediu, com lágrimas nos olhos.
Ajuda-me, padre, paizinho espiritual: tenho
de enterrar minha velha, que morreu esta manhã.
Ao que o Pope respondeu:
- Tens dinheiro para pagar pelo enterro?
Não faço fiado, nem parcelado. Tens de pagar antecipadamente.
- Lamento, santo paizinho, mas não tenho
nem um copeque furado. Vou trabalhar com afinco, e tudo o que te for devido,
pagarei com o meu trabalho.
- Nada feito, meu filho – respondeu o Pope
avarento. – Só com pagamento adiantado. Se não, tens dinheiro, podes voltar
para o lugar de onde vieste.
- E o pobre velho saiu da casa do cura.
“O que fazer?”, pensava ele, desanimado.
“Acho que terei de enterrar minha velha sozinho, com minhas próprias e velhas
mãos, sem a ajuda do Pope!”
E o velho voltou para casa pegou a pá e se arrastou para o cemitério. Escolheu um local e começou a cavar. Cava que cava,
eis que de repente sua pá bateu em algo duro, que ressoou forte. O velho olhou
e, vejam só, lá estava um pote de ferro, cheio até a borda de reluzentes moedas
de ouro, brilhando e faiscando debaixo do sol. O velho mal podia acreditar nos
seus próprios olhos – mas teve de acreditar: “Isto aqui dá até para um enterro
de rico, mais o almoço de homenagem à falecida, como é de nossa praxe. E ainda
vai sobrar muito dinheiro!”
O velho acabou de cavar a sepultura, pegou
o pote cheio de ouro e voltou para a sua isbá. Chegando em casa, ele guardou o
seu tesouro, tendo antes retirado dele a maior moeda de ouro, e voltou à casa
do Pope.
O cura avarento recebeu-o muito mal:
- Para que voltaste aqui, velho
impertinente? Eu já te disse que, sem dinheiro adiantado, nada de enterro.
- Não te zangues, santo paizinho, aceita
esta moedinha e faz para a minha velha um enterro como se deve.
E estendeu a pesada moeda de ouro para o
pope avarento, cujos olhos, ao vê-la, brilharam mais do que a própria moeda. E
imediatamente a sua voz irritada ficou suave e doce, e ele se desdobrava em
mesuras e amabilidades diante do velho mujique.
- Não queres – disse ele agarrando a moeda
-, não queres, meu filho, sentar-te aqui no banco? Tu sabes que a minha missão
é espiritual, este é o meu trabalho, e tua velha terá um enterro como ela
merece, o mais bonito, para ninguém botar defeito.
- Obrigado, paizinho – disse o velho
mujique.
Fez uma curvatura e foi-se embora, enquanto
o pope ia correndo mostrar a moeda à sua mulher.
- Olha só, mulher, para isto. Aquele traste
velho chegou aqui se fingindo de pobre coitado, querendo que eu enterrasse a
sua velha de graça. Metido a esperto, não é? Ainda bem que eu recusei: quando
viu as coisas mal paradas, resolveu voltar com esta moeda de ouro. Olha que eu
já fiz muito enterro de rico e até de nobre, mas um pagamento assim como este,
nunca recebi.
E o pope mandou chamar todos os seus
auxiliares, o diácono, o salmista, os acólitos, e realizou um enterro como
nunca antes foi visto na aldeia. E o viúvo agradecido convidou o pope com todos
os outros para o almoço de homenagem à falecida, segundo a velha praxe russa.
Quando o pope entrou na isbá do velho,
arregalou os olhos de espanto. De onde teria surgido tudo aquilo na casa do
velho e pobre campônio? Vinho e mel, salgadinhos e tira-gostos, pratos diversos,
bolos e doces – a mesa vergava debaixo de tanta e rica comida!
O pope esperou que o último convidado se
retirasse, farto e agradecido, e dirigiu-se ao velho viúvo:
- Escuta, caríssimo filho meu, confessa-te
com o teu pai espiritual, que sou eu, não guardes pecado no teu coração. Sempre
foste pobre como um rato de igreja, pode-se dizer que eras o mais pobre dos
meus paroquianos, e de repente, não se sabe como, apareces com toda esta
fartura. Conta-me a verdade meu filho: quem sabe cometeste um crime, mataste e
roubaste alguém?
O velho ficou ofendido:
- O que é isso? Eu te digo toda a verdade,
juro sobre a santa cruz: não roubei, não matei ninguém. Este ouro veio sozinho
parar nas minhas mãos. Ouve só o que aconteceu.
E o velho contou ao pope como encontrara o
tesouro, ao começar a cavar a sepultura da sua velha.
O pope escutou tudo, verde de espanto e
inveja. Chegou em casa tremendo e de pernas bambas, só pensando na sorte do velho
viúvo. A mulher estranhou o jeito dele e começou a fazer perguntas. Então ele
lhe contou o que acontecera, e os dois puseram-se a pensar em como tomar posse
do tesouro do velho.
Finalmente o pope teve uma idéia:
- Escuta, mulher, já sei o que vamos fazer.
O próprio velho vai nos entregar seu ouro, sem qualquer violência.
- Como assim – perguntou a mulher.
- Eu já te explico. Mas teremos de
sacrificar o nosso único bode. Concordas em ficar sem ele? Não terás dó de
matá-lo?
- Para que ter dó de um velho bode? – disse
a mulher. – Quando tivermos as moedas de ouro, poderemos comprar quantos bodes quisermos.
Conta qual é a tua ideia.
O pope contou à mulher o que pensara, e em
seguida pegou o facão, saiu, matou o bode, arrancou-lhe a pele, e vestiu-a no
seu próprio corpo, com cabeça, barba, chifres e tudo. E entrou em casa.
- Pega, mulher, uma agulha grossa e uma
linha forte, e costura a pele do bode no meu corpo, bem justa, para que não
escorregue e nem caia quando eu andar.
A mulher fez o que o pope mandou. E no
mesmo dia, quando bateu meia-noite, o pope saiu e dirigiu-se sorrateiro à isbá
do viúvo. Lá chegando, começou a golpear e a arranhar a janela do casebre.
O velho acordou, levantou-se e foi até a
janela.
- Quem está batendo? – perguntou.
- É o diabo! – respondeu o pope, com voz
disfarçada e ameaçadora.
- Deus me livre e guarde! – gritou o velho,
e começou a rezar, persignando-se apavorado.
- Não adianta persignar-se nem rezar, que
de mim não existe escapatória!- rosnou o pope atrás da janela. – É melhor que
me entregues logo o pote de ouro, por bem, ou será pior para ti. Fui eu que te
ajudei, te mostrei o tesouro na cova. Pensei que ias tirar um pouco, só para o
enterro, mas tu carregaste tudo! Agora devolve!
O velho, meio desconfiado, espiou pelo
reposteiro, e quase desmaiou de susto: lá estava o “diabo” em pessoa, sacudindo
a sua cabeça de bode. Cabeça de diabo, cara de bode, barba, chifres e tudo!
Apavorado o velho disse consigo: “O diabo
que vá para o inferno, com o seu ouro impuro! Se até agora eu vivi sem dinheiro,
posso terminar minha vida sem o ouro do diabo!”
E mais que depressa pegou o pote de ouro e
o colocou do lado de fora da porta de sua isbá.
- Para o diabo com este ouro maldito!
O pope disfarçado agarrou o pote e saiu
correndo. Chegou em casa esbaforido e falou para a mulher:
- Olha só, mulher, enganei o velho
bobalhão! Está aqui o dinheiro todo, todinho, só ouro puro! Pega e esconde bem
escondido!
A mulher foi esconder o pote debaixo das
tábuas do assoalho. Ao voltar, o pope, já aflito dentro da pele do bode, lhe
disse, apressado:
- Pega a faca, mulher, corta as costuras e
livra-me desta pele de bode, que já está fedendo, antes que alguém me veja.
A mulher apanhou o facão na cozinha e
começou a cortar uma costura – e o pope soltou um berro de dor:
- Ai, ui! Está doendo! Pára, pára!
E de fato, começou a escorrer sangue no
lugar do corte da linha. A mulher tentou cortar uma outra costura – e o sangue
brotou também ali.
- Ai, ui! Dói! Ai, que eu não agüento! –
uivava o pope.
E onde quer que a mulher tentasse cortar a
linha, o sangue espirrava, e o povo urrava de dor. O couro do bode tinha
grudado, inteirinho, na pele do pope avarento, e não havia como tirá-lo!
Vendo as coisas pretas, e apesar de
lamentar ter de separar-se do dinheiro mal ganho, o pope, gemendo, falou para a
mulher:
- Vai depressa, mulher, leva de volta ao
velho este ouro amaldiçoado! Quem sabe assim eu me livro desta pele de bode
fedida!
A mulher obedeceu. Pegou o pote com o
dinheiro, levou para o viúvo, confessou-lhe o truque do pope, pediu perdão e
voltou para casa.
Mas nem o arrependimento salvou o pope
avaro e mentiroso. E assim ele viveu escondido na sua casa fechada, deitado
sobre a estufa, costurado dentro da pele de bode, sem poder mostrar-se a
ninguém, até o fim da sua vida.