Crônica "Da difícil arte de redigir um
telegrama", de Jô Soares
Há uma história famosa a respeito de uns parentes que tinham que
comunicar, por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de
uma irmã. Reuniram-se em volta de uma mesa e “toca” a escrever.
Primeiro, foi o primo quem redigiu a nota. Depois
de alguns minutos, mostrou o resultado de seu trabalho: “INTERROMPA VIAGEM E
VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ MORREU”. Todos leram e um dos tios fez o seguinte
comentário:
- Eu acho que não está bom. Afinal de contas, vocês
sabem que ela é cardíaca, está viajando e um telegrama assim pode ser um
choque.
Todos concordaram, inclusive um outro primo
afastado que era meio sovina e achou o telegrama muito longo:
- Depois, com o preço que se paga por palavra, isso
não é mais um telegrama, é um telegrama.
Ninguém riu do infame trocadilho, mesmo porque
velório não é lugar para gargalhadas. Foi a vez de o cunhado tentar redigir uma
forma mais amena, que não assustasse a senhora em passeio.
Sentou-se e escreveu: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. SUA IRMÃ PASSANDO
MUITO MAL”. Novamente o telegrama não foi aprovado. Um irmão psicólogo
observou:
- Não sejamos infantis. Se ela está viajando pela
Europa e recebe esta notícia, não vai acreditar na história “passando muito
mal”. Sobretudo com
“volte correndo” no meio.
- Também concordo – falou o primo afastado sempre
pensando no outro. Então, o genro aproximou-se:
- Acho que tenho a forma ideal. Pegou o bloco e
rabiscou rapidamente: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE DEVAGAR. TUA IRMÃ PASSANDO
MAIS OU MENOS”. Todos examinaram atentamente o telegrama. A filha reclamou:
- Vocês acham que mamãe é boba? Se a gente escrever
que a titia está passando mais ou menos e que ela pode voltar devagar, ela já
vai adivinhar que todas estas precauções são pelo fato de ela ser cardíaca e
que, na realidade, a irmã dela morreu!
- Concordo plenamente _ disse o facultativo da
família que era também sobrinho da senhora em questão. Resolveu, como médico,
escrever o telegrama: “PACIENTE FORA DE PERIGO. VOLTE ASSIM QUE PUDER. PACIENTE
TUA IRMÔ.
De todas a fórmulas até então apresentadas, esta
foi a que causou mais revolta.
- Que “troço” mais infantil – gritou o netinho que
passava pela sala no momento em que a mensagem era lida. Puseram o menino para
fora da sala, mas, no íntimo, a família concordava com ele.
- Não, isso não. Se a gente manda dizer que ela
está fora de perigo, para que vamos pedir que ela interrompa a viagem? –
argumentou o tio.
- Também acho – responderam todos num coro de
aprovação. O filho mais velho resolveu tentar. Pensou bem, ponderou, sentou-se,
molhou a ponta dos lábios com a língua e caprichou. “SE POSSÍVEL, VOLTE. TUA
IRMÃ SAUDOSA. PASSANDO QUASE MAL. POR FAVOR, ACREDITE. CUIDADO CORAÇÃO. VENHA
LOGO. SAUDADES. SURPRESA”.
- Realmente, esse bate todos os recordes! _ disse
uma nora professora. Em primeiro lugar, não é “se possível”, ela tem que voltar
mesmo. Em segundo lugar, “saudosa”, tem duplo sentido. Em terceiro lugar,
ninguém passa “quase mal”. Ou passa bem ou passa mal. “Quase mal” e “quase bem”
é a mesma coisa. “Por favor, acredite” é um insulto à família toda. Ninguém
aqui é mentiroso. Depois “cuidado coração” não fica claro. Como telegrama não
tem vírgula, ela pode pensar que a gente está dizendo “cuidado, coração”, já
que a palavra coração também é usada como uma forma carinhosa de chamar os outros. Por
exemplo: “Oi, coração, tudo bem?”. E, finalmente, a palavra “surpresa” no
telegrama chega a ser requinte de crueldade. Qual é a surpresa que ela pode
esperar?
- Ela pode pensar que a titia está esperando neném - falou um sobrinho.
- Aos noventa anos de idade?
Abandonaram a ideia rapidamente. Seguiu-se longo
período de silêncio em que a família andava de lá para cá, pensando numa
solução. Pela primeira vez estavam dando-se conta de que não era fácil assim
mandar um telegrama. Serviu-se o costumeiro cafezinho, enquanto cada qual do
seu lado procurava uma maneira de escrever para a senhora em viagem, sem que
isto tivesse conseqüência desastrosas. De repente, o irmão psicólogo explodiu
num grito “eurekiano”:
- Achei!
Escreveu febrilmente no papel. O telegrama passou
de mão em mão e foi finalmente aprovado por todo mundo. Seu texto dizia:
“SIGA VIAGEM. DIVIRTA-SE. TUA IRMÃ ESTÁ ÓTIMA”.
Jô
Soares - Da difícil arte de redigir um telegrama. “O GLOBO” 26.10.1994
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