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sábado, 30 de agosto de 2014

JÔ SOARES - O INCRÍVEL JÔ! - O TELEGRAMA

Crônica "Da difícil arte de redigir um telegrama", de Jô Soares

Há uma história famosa a respeito de uns parentes que tinham que comunicar, por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de uma irmã. Reuniram-se em volta de uma mesa e “toca” a escrever. 

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Primeiro, foi o primo quem redigiu a nota. Depois de alguns minutos, mostrou o resultado de seu trabalho: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ MORREU”. Todos leram e um dos tios fez o seguinte comentário:
- Eu acho que não está bom. Afinal de contas, vocês sabem que ela é cardíaca, está viajando e um telegrama assim pode ser um choque.
Todos concordaram, inclusive um outro primo afastado que era meio sovina e achou o telegrama muito longo:
- Depois, com o preço que se paga por palavra, isso não é mais um telegrama, é um telegrama.
Ninguém riu do infame trocadilho, mesmo porque velório não é lugar para gargalhadas. Foi a vez de o cunhado tentar redigir uma forma mais amena, que não assustasse a senhora em passeio. Sentou-se e escreveu: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. SUA IRMÃ PASSANDO MUITO MAL”. Novamente o telegrama não foi aprovado. Um irmão psicólogo observou:
 - Não sejamos infantis. Se ela está viajando pela Europa e recebe esta notícia, não vai acreditar na história “passando muito mal”. Sobretudo com “volte correndo” no meio.
 - Também concordo – falou o primo afastado sempre pensando no outro. Então, o genro aproximou-se:
 - Acho que tenho a forma ideal. Pegou o bloco e rabiscou rapidamente: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE DEVAGAR. TUA IRMÃ PASSANDO MAIS OU MENOS”. Todos examinaram atentamente o telegrama. A filha reclamou:
 - Vocês acham que mamãe é boba? Se a gente escrever que a titia está passando mais ou menos e que ela pode voltar devagar, ela já vai adivinhar que todas estas precauções são pelo fato de ela ser cardíaca e que, na realidade, a irmã dela morreu!
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 - Concordo plenamente _ disse o facultativo da família que era também sobrinho da senhora em questão. Resolveu, como médico, escrever o telegrama: “PACIENTE FORA DE PERIGO. VOLTE ASSIM QUE PUDER. PACIENTE TUA IRMÔ.
De todas a fórmulas até então apresentadas, esta foi a que causou mais revolta.
 - Que “troço” mais infantil – gritou o netinho que passava pela sala no momento em que a mensagem era lida. Puseram o menino para fora da sala, mas, no íntimo, a família concordava com ele.
 - Não, isso não. Se a gente manda dizer que ela está fora de perigo, para que vamos pedir que ela interrompa a viagem? – argumentou o tio.
 - Também acho – responderam todos num coro de aprovação. O filho mais velho resolveu tentar. Pensou bem, ponderou, sentou-se, molhou a ponta dos lábios com a língua e caprichou. “SE POSSÍVEL, VOLTE. TUA IRMÃ SAUDOSA. PASSANDO QUASE MAL. POR FAVOR, ACREDITE. CUIDADO CORAÇÃO. VENHA LOGO. SAUDADES. SURPRESA”.
 - Realmente, esse bate todos os recordes! _ disse uma nora professora. Em primeiro lugar, não é “se possível”, ela tem que voltar mesmo. Em segundo lugar, “saudosa”, tem duplo sentido. Em terceiro lugar, ninguém passa “quase mal”. Ou passa bem ou passa mal. “Quase mal” e “quase bem” é a mesma coisa. “Por favor, acredite” é um insulto à família toda. Ninguém aqui é mentiroso. Depois “cuidado coração” não fica claro. Como telegrama não tem vírgula, ela pode pensar que a gente está dizendo “cuidado, coração”, já que a palavra coração também é usada como uma forma carinhosa de chamar os outros. Por exemplo: “Oi, coração, tudo bem?”. E, finalmente, a palavra “surpresa” no telegrama chega a ser requinte de crueldade. Qual é a surpresa que ela pode esperar?
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 - Ela pode pensar que a titia está esperando neném - falou um sobrinho.
 - Aos noventa anos de idade?
Abandonaram a ideia rapidamente. Seguiu-se longo período de silêncio em que a família andava de lá para cá, pensando numa solução. Pela primeira vez estavam dando-se conta de que não era fácil assim mandar um telegrama. Serviu-se o costumeiro cafezinho, enquanto cada qual do seu lado procurava uma maneira de escrever para a senhora em viagem, sem que isto tivesse conseqüência desastrosas. De repente, o irmão psicólogo explodiu num grito “eurekiano”:
 - Achei!
Escreveu febrilmente no papel. O telegrama passou de mão em mão e foi finalmente aprovado por todo mundo. Seu texto dizia:

“SIGA VIAGEM. DIVIRTA-SE. TUA IRMÃ ESTÁ ÓTIMA”.

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Jô Soares - Da difícil arte de redigir um telegrama. “O GLOBO” 26.10.1994

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