O PLANTADOR DE
ESPINHOS
MALBA TAHAN
Caminhava o xeque Omar Saleque com sua pomposa
comitiva pela estrada de Bagdá, quando avistou um homem que, indiferente ao
calor torturante, empenhava-se em revolver a terra ingrata e seca.
Só um louco poderia pensar em cultivar aquele solo
arenoso onde mal podiam medrar as plantas venenosas do deserto.
Aproximou-se o xeque do desconhecido e em tom
amistoso perguntou-lhe:
- Por Allah, meu amigo! Que pretendes plantar
nestas paragens agrestes que a maldição do céu tornou mais estéril que os
vidros de um espelho chinês?
- Deliberei fazer aqui, ó xeque! - respondeu o
interpelado - uma plantação de espinhos.
Dela espero tirar os recursos necessários para
viver!
- Infeliz! - murmurou penalizado o xeque. - O
Destino roubou-te por certo a luz da razão. Só a um demente poderia ocorrer tão
disparatada ideia.
Um episódio insignificante serve muitas vezes para
quebrar a monotonia de uma longa viagem. Disposto, pois a divertir-se um pouco
com aquele maníaco, o xeque perguntou-lhe afetando viva curiosidade:
- Qual é o teu plano para o futuro, ó plantador de
espinhos? Que preço esperas alcançar para o teu rico produto nos mercados de
Basra?
- Não pretendo vender espinhos - retorquiu o árabe.
- A minha ideia é muito simples e razoável. Vou expô-la em poucas palavras.
E depois de pequena pausa começou:
- Por esta estrada passa de quando em vez uma
caravana. Não é verdade?
- Decerto que sim - concordou o xeque. - Duas ou
três vezes por ano esta estrada é percorrida pelas caravanas de Basra ou
Mossul!
- E é bem possível! - continuou o homem - que uma
dessas caravanas transporte grande carregamento de algodão.
- Sim, é possível. De quando em vez toma o rumo de
Bagdá uma caravana que traz algodão do Egito.
- É provável, também, que nessa caravana, que
conduz algodão, haja um camelo tonto.
- Sim, sim, é provável! - assentiu o xeque. - Em
meio de numerosa caravana lá vem, por vezes, um camelo tonto. É raro, mas
acontece.
- É bem possível, portanto, que esse camelo tonto,
ao passar junto desses pés de espinho, escorregue e caia. Ao tombar o animal
pode dar-se que se rompa o fardo de algodão. Aberto o fardo e derramado o
algodão, é de esperar que muitos pedaços de algodão fiquem presos aos espinhos.
Retiro esse algodão e vou vendê-lo no mercado, obtendo assim algum dinheiro!
O xeque Omar riu-se estrepitosamente ao ouvir o
relato daquele imaginoso plano e nessa expansão de alegria foi imitado pelos
amigos que o rodeavam.
- Mac Allah! - exclamou o xeque, - a dúvida
substituiu-se em meu espírito pela mais robusta certeza! Ninguém me convenceria
agora de que não passas, ó plantador, de um triste louco. Procuras assentar o
teu futuro numa série de eventualidades bem mais que improváveis: firmas tuas
esperanças em vários acasos sucessivos, para os quais não há, dentro do
razoável, possibilidade alguma de realização. Quanta coisa imaginaste! A
caravana que passa (coisa rara), o algodão, o camelo tonto, a queda do camelo,
dando-se precisamente neste lugar, o fardo espedaçado, o algodão nos
espinhos... Ah! Ah! Ah! - É de fazer rir o mais ingênuo beduíno do deserto!
Nesse momento, um dos companheiros de Omar
disse-lhe, em voz baixa, muito sério:
- Esse homem prestou-nos, a meu ver, ó xeque!, um
inestimável serviço. A nossa viagem para a gloriosa Bagdá apresentava-se até
agora monótona e sem interesse; esse episódio do plantador de espinhos é
originalíssimo e poderá ser contado ao nosso bondoso soberano,
Harun-al-Raschid, Príncipe dos Crentes (Que Allah o conserve!). Teremos,
destarte, oportunidade de agradar o grande Emir e dele obter os favores que
pretendemos.
- Tens razão, meu amigo - concordou o xeque - esta
aventura é digna de ser contada ao generoso Harum-Al-Raschid, Comendador dos
Crentes. Vou dar a êste pobre homem valiosa recompensa.
E, tirando de sua bolsa um punhado de moedas,
ofereceu-as ao singular plantador de espinhos.
Com grande surpresa viram todos, porém, o
desconhecido recusar o ouro do xeque. E justificou de modo decisivo a sua
estranha atitude:
- Jurei que só ganharia dinheiro com o algodão dos
espinhos. Vejo-me, pois, impedido de aceitar o auxílio dos viajantes ricos e
generosos!
Ao chegar a Bagdá o xeque Omar foi recebido pelo
califa, e em palestra contou ao poderoso soberano o episódio ocorrido na
estrada com o singular plantador do deserto, que recusava até o ouro que lhe
ofereciam, na esperança vã de ganhar dinheiro com o algodão preso aos espinhos
e fisgado da carga de um camelo tonto que viria, talvez, numa imaginária
caravana de mercadores.
- Preciso falar a esse homem! - declarou logo o
califa. E mandou imediatamente que os seus oficiais trouxessem à sua presença o
visionário da estrada.
Conduzido ao palácio real, o estranho
"agricultor" foi interrogado pelo sultão, que ficara desde logo
tomado de viva curiosidade pelo caso.
O plantador de espinhos, depois de beijar
respeitosamente a terra entre as mãos, iniciou o seguinte relato:
- O meu nome, ó Comendador dos Crentes! É Ahmed
Faride. A minha vida tem sido até agora uma série de lamentáveis fracassos,
porque mal dou início a uma tarefa, deixo-a de lado para retomar outro
trabalho. Não consegui, por amor de meu gênio inconstante, finalizar uma única
das obras que encetei. Para corrigir-me desse grave defeito deliberei pôr
ombros a uma empreitada quase impossível e levá-la sem desfalecimentos até
completa realização. Imaginei para tal fim essa extravagante plantação de
espinhos, que o maior utopista repeliria sem hesitar. Estou agora completamente
mudado; sou de uma constância inabalável nos meus propósitos e empreendimentos.
- Por Allah! - exclamou o califa. - És o homem que
eu procurava. Vou nomear-te prefeito desta cidade, e estou certo de que farás
uma administração admirável. A meu ver os grandes males do povo resultam das
obras úteis e acertadas que os governos começam, mas não acabam. Que graves meu
ver os grandes males do povo resultam das obras úteis e acertadas que os
governos começam, mas não acabam. Que graves prejuízos não advêm desses erros
administrativos! Considero verdadeiros criminosos aqueles que não levam a bom
termo os empreendimentos iniciados, às vezes, sob os melhores auspícios. Espero
pois, Ahmede Faridel, que essa plantação de espinhos seja a tua última obra
inacabada!
E assim aconteceu, realmente. Ahmede Faride,
desligado do juramento anterior, foi nomeado prefeito de Bagdá e durante vários
anos mostrou-se um administrador digno dos maiores encômios. Obra reputada
necessária e útil, uma vez iniciada, era fatalmente levada até ao fim. E o seu
nome, como sinal de gratidão do povo, foi gravado em letras de ouro junto ao
"mirab" da mesquita mais rica do Islã
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