ESCRITO POR OLAVO DE CARVALHO |
27 AGOSTO 2014
ARTIGOS - CULTURA
“Admirar sempre moderadamente é sinal de
mediocridade”, ensinava Leibniz. Uma das constantes da mentalidade nacional é
precisamente o temor de admirar, a necessidade de moderar o elogio – ou
entremeá-lo de críticas – para não passar por adulador e idólatra.
Já mencionei esse vício em outros artigos,
assinalando que ele resulta em consagrar a mediocridade como um dever e um
mérito – às vezes, a condição indispensável do prestígio e do respeito.
Mas não é vício isolado. Vêm junto com pelo menos
mais dois, que o prolongam e consolidam:
O primeiro é este: Ao contrário do elogio, a
crítica, a detração e até mesmo a difamação pura e simples não exigem nem
admitem limite algum, nem precisam de justificativa: é direito incondicional do
cidadão atribuir ao seu próximo todos os defeitos, pecados e crimes reais ou
imaginários, ou então simplesmente condená-lo ao inferno por lhe faltar alguma
perfeição divina supostamente abundante na pessoa do crítico. Esse vício faz do
efeito Dunning-Kruger (incapacidade de comparar objetivamente os próprios dons
com os alheios) mais que uma endemia, uma obrigação.
O segundo é talvez o mais grave: na mesma medida em
que se depreciam os méritos de quem os tem, exaltam-se até o sétimo céu aqueles
de quem não tem nenhum. O mecanismo é simples: se as altas qualidades excitam a
inveja e o despeito, a mediocridade e a incompetência infundem no
observador uma reconfortante sensação de alívio, a secreta alegria de saber que
o elogiado não é de maneira alguma melhor que ele. A compulsão de enaltecer
virtudes inexistentes torna-se uma modalidade socialmente aprovada de
auto-elogio indireto.
Da pura depreciação de méritos reais passa-se assim
à completa inversão do senso de valores, onde a mais alta virtude consiste
precisamente em não ser melhor que ninguém.
Essa inversão já era bem conhecida desde a “Teoria
do Medalhão” de Machado de Assis e as sátiras de Lima Barreto, mas nas últimas
décadas foi levada às suas últimas conseqüências, na medida em que a esquerda
ascendente, ávida de auto-glorificar-se e depreciar tudo o mais, precisava
desesperadamente de heróis, santos e gênios postiços para repovoar o imaginário
popular esvaziado pela “crítica radical de tudo quanto existe” (expressão de
Karl Marx).
A lista de mediocridades laureadas começa nos
anos 60 com o presidente João Goulart, o arcebispo Dom Hélder Câmara, o
almirante Cândido Aragão, o criador das Ligas Camponesas -- Francisco Julião
--, o doutrinador comunista Paulo Freire e toda uma plêiade de coitados,
erguidos de improviso à condição de “heróis do povo” e incapazes de oferecer
qualquer resistência ao golpe militar que os pôs em fuga sem disparar um só tiro.
Nas décadas seguintes, o insignificante cardeal Dom
Paulo Evaristo Arns transfigurou-se num novo S.
Francisco de Assis por fazer da Praça da Sé um abrigo de delinquentes; o sr.
Herbert de Souza, o Betinho, por ter tido a ideia maliciosa de transformar as
instituições de caridade em órgãos auxiliares da propaganda comunista, foi
proposto pela revista Veja, sem aparente intenção humorística, como
candidato à beatificação; e o sr. Lula, sem ter trabalhado mais de umas poucas
semanas, foi elevado ao estatuto de Trabalhador Arquetípico, preparando sua
eleição à Presidência da República e a pletora de títulos de doutor honoris
causa que consagraram o seu orgulhoso analfabetismo como um modelo
superior de ciência.
Nesse ínterim, é claro, a produção de obras
literárias significativas reduziu-se a zero, milhares de indivíduos incapazes
de conjugar um verbo tornaram-se professores catedráticos, as citações de
trabalhos científicos brasileiros na bibliografia internacional foram se
reduzindo até desaparecer, o número de analfabetos funcionais entre os
estudantes universitários subiu a quase cinqüenta por cento e os alunos das
nossas escolas secundárias começaram a tirar sistematicamente os últimos
lugares nos testes internacionais, abaixo de seus colegas da Zâmbia e do
Paraguai – resultado que um ministro da Educação achou até reconfortante, pois,
segundo ele, “poderia ter sido pior” (até hoje ninguém sabe o que ele quis
dizer com isso).
A devastação geral da inteligência lesou até alguns
cérebros que poderiam ter dado exemplos de imunidade à estupidez crescente. Nos
anos que se seguiram ao golpe de 1964, os partidos comunistas conseguiram
cooptar, sob o pretexto de “luta pela democracia”, vários intelectuais até
então cristãos e conservadores, que, travados pelo senso das conveniências
imediatas, foram então perdendo seus talentos até chegar à quase completa
esterilidade. Desse período em diante, Otto Maria Carpeaux nada mais escreveu
que se comparasse à História da Literatura Ocidental (1947) ou
aos ensaios de A Cinza do Purgatório (1942) e Origens
e Fins (1943); Ariano Suassuna nunca mais repetiu os tours de
force do Auto da Compadecida (1955) e de A
Pena e a Lei (1959), Alceu Amoroso Lima deixou de ser o filósofo
de O Existencialismo e Outros Mitos do Nosso Tempo (1951) e
de Meditações sobre o Mundo Interior (1953), para
tornar-se poster man da esquerda e garoto-propa-ganda do
ridículo Hélder Câmara.
Nada disso foi coincidência. A total subordinação
da cultura superior aos interesses do Partido é objetivo explícito e declarado
da estratégia de Antonio Gramsci, um sagüi intelectual que se tornou, entre os
anos 60 e 90 do século passado, o guru máximo das consciências e o autor mais
citado em teses acadêmicas no Brasil.
Comparados aos feitos da esquerda no campo da
educação e da cultura, o Mensalão, o dinheiro na cueca e a roubalheira na
Petrobrás recobrem-se até de uma aura de santidade.
Publicado no Diário do Comércio.