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terça-feira, 17 de novembro de 2020

IRMÃOS GRIMM - IRMÃOZINHO E IRMÃZINHA (O GAMO ENCANTADO)

 IRMÃOZINHO E IRMÃZINHA
(O GAMO ENCANTADO)

CONTO DOS IRMÃOS GRIMM

           O irmãozinho, pegando a irmãzinha pela mão, disse:
         - Desde que nossa mãe morreu, nunca mais tivemos uma hora feliz: nossa madrasta nos espanca todos os dias e, quando chegamos perto dela, nos enxota a pontapés. Nosso único alimento, são as côdeas duras de pão; trata melhor o cachorrinho debaixo da mesa, pelo menos ela lhe dá, de vez em quando, algum bocado bem bom. Meu Deus, se nossa mãe soubesse! Vem, vamo-nos embora daqui, vamos por esse mundo afora.
       Foram andando e caminharam o dia inteiro, percorrendo prados, campos, caminhos pedregosos. De repente, começou a chover, e a irmãzinha disse:
          - Deus e os nossos corações estão chorando juntos.


Ao anoitecer, chegaram a uma grande floresta; estavam tão cansados de chorar e de andar e com tanta fome que resolveram entrar na cavidade de uma velha árvore oca e aí adormeceram.
Na manhã seguinte, quando despertaram, o sol já estava alto no céu e seus raios ardentes penetravam na cavidade da árvore. Então, o irmãozinho disse:
- Estou com sede, irmãzinha; se descobrisse alguma fonte por aí, iria beber um pouco; aliás, parece-me ouvir um murmúrio de água a correr!
              
          Levantou-se, pegou a irmãzinha pela mão e saíram ambos à procura da fonte. Mas a perversa madrasta, que era uma bruxa ruim, vira os meninos irem-se embora; seguiu-os ocultamente, mesmo como fazem as bruxas, e enfeitiçou os mananciais da floresta. Quando os meninos encontraram o regato de água, que corria cintilante sobre as pedras, o irmãozinho precipitou-se para beber; mas a irmãzinha ouviu o murmúrio da água que dizia:
            - Quem beber desta água transformar-se-á em tigre.
         - Peço-te, querido irmãozinho, que não bebas desta água, - disse ela, - senão te transformarás em fera e me devorarás.

          
O irmãozinho não bebeu, apesar da grande sede que tinha, e disse:
- Esperarei até encontrar outra fonte.
Quando, porém, chegaram à outra fonte, a irmãzinha ouviu-a dizer:
- Quem beber desta água se transformará em lobo; transformar-se-á em lobo.
Não bebas, querido irmãozinho, - suplicou a irmãzinha, - senão te transformarás em lobo e me devorarás.
O irmãozinho não bebeu, mas disse:
- Esperarei até encontrar a terceira fonte: ai então beberei, digas o que disseres, pois não resisto mais de tanta sede.

           Quando chegaram à terceira fonte, a irmãzinha ouviu- a murmurar:
     - Quem beber desta água transformar-se-á num gamozinho.
           A irmãzinha tornou a pedir:
          - Oh, meu irmãozinho, peço-te, não bebas desta água, senão te transformarás num gamozinho e fugirás de mim.
         Mas o irmãozinho já estava ajoelhado junto da água e bebeu, porque sentia grande sede. Mal tinha sorvido os primeiros goles, eis que se transformou num pequeno gamo.

           A irmãzinha, então, chorou muito ao ver o irmãozinho transformado em gamo e este chorou com ela, achegando-se muito acabrunhado ao seu lado. Por fim a menina disse:
          - Tranquiliza-te, meu querido gamozinho, eu jamais te abandonarei.
      Desprendeu da perna sua liga dourada e atou-a ao pescoço do gamo; colheu alguns juncos e com eles trançou um cordel com o qual prendeu o animalzinho; depois internaram-se ambos na floresta.
       Andaram, andaram, andaram e, por fim, descobriram uma casinha; a menina espiou dentro, viu que estava vazia, e resolveu: "Ficaremos morando aqui."
            Juntou folhas e musgo e fez uma caminha macia para o gamozinho e todas as manhãs saía cedo para colher raízes, amoras e nozes pura seu sustento.
               A irmãzinha colhia a erva mais tenra, que ele vinha comer alegremente em suas mãozinhas, saltando e dando mil cabriolas a seu lado. A noite, cansada das labutas diárias, irmãzinha rezava suas orações, depois reclinava a cabeça no dorso de gamozinho e nesse travesseiro adormecia sossegada. Se o irmãozinho voltasse à forma humana, a vida ali seria maravilhosa.
            Bastante tempo viveram ainda sozinhos na floresta, mas deu-se o caso que o rei organizou uma grande caçada; então ressoaram as trompas por entre o arvoredo, o latido dos cães, os gritos alegres dos caçadores, e o gamozinho, ouvindo esse tropel, pensou no prazer que teria em participar daquele divertimento.
            - Ah, - disse ele à irmãzinha, - deixa-me tomar parte na caçada! Não resisto à vontade de ir ter com eles.

             Tanto implorou que ela teve de consentir, mas disse--lhe:
            - Deves voltar, à tarde; eu fecharei a porta por causa dos caçadores; ao bater, para que se reconheça, deves dizer:
"Deixa-me entrar, minha irmãzinha"; se não disseres isso, não abrirei.
          O gamozinho escapuliu bem depressa, satisfeito e feliz por encontrar-se ao ar livre. O rei e os caçadores, vendo o lindo animalzinho, saíram em sua perseguição, mas não conseguiram alcançá-lo, pois quando contavam agarrá-lo, de um salto ele desapareceu por trás das moitas. Assim que anoiteceu, correu para casa, bateu à porta e disse:
           - Deixa-me entrar minha irmãzinha!
        Então, a porta abriu-se; ele pulou para dentro e dormiu, tranquilamente, a noite toda, no seu fofo leito. No dia seguinte, teve prosseguimento a caçada; quando o gamozinho ouviu as trompas de caça e os oh, oh, dos caçadores, não pôde conter-se e disse:
         - Abre-me a porta, irmãzinha, tenho que sair!
        A irmãzinha abriu e tornou a dizer:
        - Tens, porém, que voltar à tarde e pronunciar a senha.
Assim que o rei e os caçadores tornaram a ver o gamozinho com a coleira de ouro, voltaram a persegui-lo, mas ele era muito ágil e esperto. A perseguição durou o dia todo, até que afinal, ao entardecer, os caçadores conseguiram cercá-lo e um deles feriu-o no pé. O pobre gamozinho, mancando muito, conseguiu fugir, embora menos depressa. Um dos caçadores seguiu-o, cautelosamente, e viu-o chegar à casinha e chamar:
- Deixa-me entrar, minha irmãzinha!

           A porta abriu-se e fechou-se rapidamente. O caçador, vendo isso, guardou tudo na memória e foi contar ao rei o que vira e ouvira.
         - Amanhã, - disse o rei, - voltaremos a caçar outra vez.
Entretanto, a irmãzinha assustara-se terrivelmente quando viu o gamozinho ferido. Levou-lhe o ferimento e aplicou-lhe logo algumas ervas, dizendo:
       - Agora vai deitar-te, meu querido gamozinho, para sarar bem depressa.
       O ferimento, porém, era tão insignificante que na manhã seguinte o gamozinho não tinha mais nada. Ouvindo novamente a algazarra dos caçadores, exclamou:
     - Não resisto ficar aqui, tenho de ir logo para lá; desta vez não me pegarão facilmente.
      A irmãzinha, chorando, dizia-lhe:
     - Desta vez te matarão e eu ficarei sozinha nesta floresta, abandonada por todos; não, não te deixarei ir.

           - Se não for morrerei de tristeza, - lamentava-se o gamo, - quando ouço a trompa de caça, não posso conter-me dentro da pele!
            A irmãzinha não teve outro remédio senão abrir-lhe a porta, embora com o coração cheio de angústia. O gamo, alegre e feliz, disparou rumo à floresta. Assim que o rei o viu, ordenou aos caçadores:
          - Podeis segui-lo, o dia todo, mas proíbo que se lhe faça o menor mal.
            Logo que o sol se escondeu, disse o rei ao caçador:
            - Vem, mostra-me a casinha da floresta.
        Quando chegaram diante da porta, o rei bateu, dizendo:
            - Deixa-me entrar, minha irmãzinha!

         Então a porta se abriu e o rei entrou; lá dentro, deparou com uma jovem tão linda como jamais vira. A jovem assustou-se quando viu entrar, não o seu querido gamozinho, mas um homem estranho, com uma coroa de ouro na cabeça. Entretanto, o rei contemplava-a com tanta doçura e meiguice que, quando lhe estendeu a mão disse:
          - Queres vir comigo para meu castelo e ser minha esposa?
             Ela respondeu contente:
       - Oh, sim! Mas quero que o meu gamozinho me acompanhe, pois nunca me separarei dele.
         - Ficará sempre contigo, - prometeu o rei, - e enquanto viveres nada lhe faltará.
          Nisso, chegou o gamo fazendo cabriolas; a irmãzinha prendeu-o com o cordel de junco, segurando-o com as mãos; depois saíram todos da casinha da floresta.

             O rei fê-la montar no cavalo e conduziu-a ao castelo onde, pouco depois, realizaram as bodas, com intenso júbilo e grandes pompas. Assim, ela tornou-se Sua Majestade a Rainha e juntos iam vivendo felizes e tranquilos. O gamo era bem alimentado, bem tratado e passava o tempo dando cabriolas no jardim.
            A perversa madrasta, que havia obrigado as crianças a vagar ao leu, julgava que a irmãzinha tivesse sido devorada pelas feras na floresta e o irmãozinho, transformado em gamo, tivesse caído vítima dos caçadores. Entretanto. quando ouviu contar que viviam felizes e abastados, o coração encheu-se de inveja e de ciúme, não tendo mais sossego. Não pensava em outra coisa senão na maneira de criar-lhes novas desventuras. Sua filha única. que era feia como a escuridão e que tinha um só olho, censurava-a, dizendo:
            - A mim é que devia calhar a sorte de ser rainha!
         - Fica tranquila, - respondeu a velha, acrescentando com satisfação: - no momento oportuno, estarei a postos!

            E o momento oportuno chegou. A rainha deu à luz um belo menino, justamente quando o rei se achava ausente, durante as caçadas. A bruxa, então, tomando o aspecto da camareira, entrou no quarto onde repousava a rainha e disse-lhe:
          - Vinde, senhora, vosso banho está pronto; ele vos fará bem e vos dará novas forças, vinde logo, antes que esfrie.
            Com ela estava também a filha. Ambas carregaram a rainha, ainda muito débil, para o quarto de banho e puseram-na na banheira; depois fecharam a porta e fugiram. Antes, porém, haviam acendido um fogo infernal no quarto de banho e a rainha, fechada lá dentro, em breve sucumbiu sufocada.
          Feito isto, a velha meteu uma touca na cabeça da filha e deitou-a no leito, no lugar da rainha. Deu-lhe também a forma e a semelhança desta; só não pôde restituir-lhe o olho que lhe faltava; e para que o rei não percebesse, ela foi obrigada a deitar-se de lado, tentando assim esconder a falha.

          À noite, quando voltou e soube que lhe nascera um menino, o rei ficou radiante de alegria e quis logo dirigir-se ao quarto de sua querida esposa a fim de saber como estava passando. A velha, porém, interveio rápida, gritando:
         - Pelo amor de Deus, deixai as cortinas fechadas; e rainha ainda não pode ver luz, além disso está muito fraca e precisa descansar.
         O rei, então, retirou-se e não ficou sabendo que no leito havia uma falsa rainha.
          Mas à meia-noite, quando todos dormiam no castelo, a ama velava junto ao berço do recém-nascido e viu abrir-se a porta e entrar a verdadeira rainha. Esta tirou a criança do berço, tomou-a no colo e deu-lhe de mamar; depois ajeitou o travesseirinho e deitou-a, agasalhando-a bem com o cobertorzinho. Não esqueceu, também, o seu gamozinho; dirigiu-se para o canto onde estava deitado e fez-lhe alguns carinhos; em seguida saiu silenciosamente, como havia entrado. Na manhã seguinte, a ama perguntou aos guardas se tinham visto entrar alguém no castelo durante a noite.                   Responderam-lhe:
             - Não, não vimos entrar ninguém.

         Durante muitas noites seguidas, a rainha voltou a aparecer, sempre sem pronunciar palavra; a ama via-a todas as vezes, mas não ousava contar a ninguém.
            Depois de alguns dias, a rainha certa noite começou a falar:
"Que faz o meu filhinho?
Que faz meu gamozinho?
Ainda duas vezes virei,
depois nunca mais voltarei."
           A ama não disse nada, mas, quando ela desapareceu, foi aonde se encontrava o rei e contou-lhe tudo o que vinha se passando.
       - Meu Deus, - exclamou o rei, - que será isso! Na próxima noite, ficarei velando perto de meu filho.
         Assim o fez; chegando à noite, ocultou-se no quarto do menino e, quando deu meia-noite, viu aparecer a rainha, que tornou a falar:
"Que faz o meu filhinho?
Que faz meu gamozinho?
Ainda uma vez virei,
depois nunca mais voltarei."

              O rei então não se conteve mais, correu para ela, dizendo:
- Não podes ser outra senão a minha esposa querida.
- Sim, - respondeu-lhe ela, - sou eu mesma, tua esposa querida.
Pela graça de Deus, voltou à vida; bela, sadia e viçosa como fora antes. Contou ao rei o crime praticado pela bruxa perversa e sua filha e o rei, então mandou que fossem ambas julgadas e condenadas. A filha foi conduzida à floresta, onde acabou estraçalhada pelos animais ferozes; a bruxa foi lançada à fogueira, onde teve morte horrível e assim que se transformou em cinzas, o gamozinho recuperou novamente seu aspecto humano.
A partir de então, a irmãzinha e o irmãozinho viveram juntos com o rei no castelo, alegres e felizes pelo resto da vida.

FIM

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