A CAOLHA
CONTO DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA
LIVRO: OS 100 MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO: PGS:49 A 54
SELEÇÃO DE MORICONI, ÍTALO
RIO DE JANEIRO: OBJETIVA, 2001
A
caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado,
braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos
grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas,
chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o
louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento;
boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o
pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
O
seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela
sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito
horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada,
deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.
Era
essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação
incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.
Morava
numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate;
ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa
inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares
feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo,
ia-se a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida;
até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência
do negócio, passava a comer fora…
Ela
fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele
filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que
lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um
beijo todas as amarguras da existência?
Um
beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste
coração de mãe! Mas… os beijos foram escasseando também, com o crescimento do
Antonico! Em criança ele apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de beijos;
depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios
de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela
compreendia tudo e calava-se.
O
filho não sofria menos.
Quando
em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os
colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo – o filho da caolha.
Aquilo
exasperava-o; respondia sempre:
–
Eu tenho nome!
Os
outros riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam
com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los – mas a alcunha pegou. Já não
era só na escola que o chamavam assim.
Na
rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha!
Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
Eram
as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos
irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!
As
quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lanche,
aprenderam depressa a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os
pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de
araçás, com piedade e simpatia:
–
Taí, isso é para o filho da caolha!
O
Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras;
tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num
estribilho já combinado:
–
Filho da caolha, filho da caolha!
O
Antonico pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e muito vermelho,
contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os
companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam
caretas de náuseas.
A
caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos
onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os
condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma
oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a
chamá-lo – o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
Além
de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios.
Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à
porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto
que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos
sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!
Depois
disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos,
dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e
nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz,
num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia!
Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar
numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do
filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse
terem caridade!
Antonico
encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros;
quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos
lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi
desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram
alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra
pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o
desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa
era diversa: ele amava! Amava como um louco a linda moreninha da esquina
fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca
fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e
expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da
morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a
mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!
Aquele
beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu
querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia
consigo:
–
Sou muito feliz… o meu filho é um anjo!
Entretanto,
o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia
seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos
dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.
Ao
princípio pensava: – É o pudor.
Depois
começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela
moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse
completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a
mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem
compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de – nora
da caolha, ou coisa semelhante!
O
Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse
pensamentos tão práticos!
Depois
o seu rancor se voltou para a mãe.
Ela
era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância,
quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro
sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e
resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado
continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em
quando vê-la à noite, furtivamente…
Salvava
assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada
a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor…
Passou
um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão
de o expor à mãe.
A
velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo
engordurado. O Antonico pensou: “Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha
mulher a viver em companhia de… uma tal criatura?” Estas últimas palavras foram
arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o
rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
–
Limpe a cara, mãe…
Ela
sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
–
Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
–
Foi uma doença, – respondeu sufocadamente a mãe – é melhor não lembrar isso!
–
E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
–
Porque não vale a pena; nada se remedeia…
–
Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na
vizinhança da loja… já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos
os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa… É por força
maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!…
Ele,
magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo
como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa
cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia,
e espreitava agora a mãe com um olhar desconfiado e medroso.
A
caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com
doloroso desdém:
–
Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já
sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
O
rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até
então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem
que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
Ela
o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante
à parede do corredor e desabafou em soluços.
O
Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na
manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem;
via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio,
narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do
coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho – murcho e sujo de pus; via a sua
atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com
energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande
fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe
atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o
perigo de outra semelhante.
Providencialmente,
lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a
procurava.
Foi
pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera. A
madrinha escutou-o comovida; depois disse:
–
Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade
inteira; ela não quis, aí está!
–
Que verdade, madrinha?
Encontraram
a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho – queria mandar-lhe a roupa
limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a
noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas… Via o
porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram,
ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.
A
madrinha do Antonico começou logo:
–
O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui
ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias
ter-lhe dito!
–
Cala-te! – murmurou com voz apagada a caolha.
–
Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a
tua mãe foste tu!
O
afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
–
Ah, não tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste
na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a
catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito
de dor que ela deu!
O
Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se
rapidamente dele, murmurando trêmula:
–
Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!
FIM