O VELHO ZAMARAK
Malba tahan
Porque os retos habitarão a Terra, e os sinceros nela permanecerão
Salomão, provérbios, 2, 21
Vou contar-vos, agora, ó irmão dos árabes, a curiosa lenda intitulada “O Velho Zamarak”, que ouvi, durante o último inverno, quando percorria o interior da Pérsia.
- Onde fica Zamarka?
Eis aí uma pergunta capaz de perturbar e
confundir um sábio geógrafo. Vou, porém, esclarecê-la de uma vez para sempre. Zamarak
é uma pequenina aldeia, de três mil tamareiras, que fica além de Kishin, num
país longínquo, banhado pelo mar da Arábia.
Reza, pois, a tradição, que em Zamarak
vivia um velho que tinha 97 anos. Esse número, bem sabeis, simboliza uma longa
existência na face da Terra. E o singular ancião, quase centenário, possuía
saúde admirável e uma invulgar resistência: trabalhava ativamente, percorria a
cavalo largo trecho do deserto, caçava gazela, domesticava falcões de raça e
praticava mil outras proezas que só os jovens robustos são capazes de levar a
termo.
O generoso rei Ali Djafar Billah, ao passar
certa vez com sua caravana pelo oásis de Zamarka, foi informado da existência
do prodigioso ancião.
Mandou o monarca que trouxessem o velho à
sua tenda e interpelou-o.
- Meu amigo – disse-lhe bondoso -, bem vejo
que sois, ainda, forte e sadio numa idade em que o homem, em geral, já se vê
trôpego, fraco e esmagado pelo peso da própria vida. Se o egoísmo humano não
vos impedir de revelar o vosso segredo, dizei-me qual foi o bálsamo maravilhoso
que vos proporcionou essa invejável vitória sobre o tempo e essa resistência
para a vida?
- Rei magnânimo e justo – retorquiu o velho
-, vou atender ao vosso pedido. Não conheço, porém, bálsamos nem remédios
milagrosos. Devo a saúde que ainda hoje possuo ao regime de vida que adotei.
Esse regime admirável resume-se em três preceitos para mim invioláveis e
sagrados.
- Qual é o primeiro? – indagou o rei com
afetada paciência. O velho de 97 anos respondeu, baixando um pouco a voz:
- Nunca perdi o orvalho da manhã!
- Por Alá! É interessante! – comentou, jubiloso
o monarca. – Compreendo muito bem o sentido oculto de vossas palavras: quereis
dizer que sois por hábito madrugador e que só um homem dado ao trabalho ativo,
de vida metódica, nunca “perde o orvalho da manhã”.
- O segundo preceito – acrescentou o ancião,
depois de breve silêncio – é o seguinte: nunca bebi de um cântaro sem me
assegurar da pureza da fonte!
- Muito bem! – tornou, risonho, o soberano.
– A vossa regra de bem viver exprime o cuidado que o homem deve ter com a
própria alimentação. Nossa saúde depende muito da água que bebemos e do pão que
comemos. Qual o terceiro e último preceito?
- É o mais importante dos três – confessou
o velho beduíno. – A esse preceito devo exclusivamente a vida calma e tranqüila
que tenho tido: jamais contrariei alguém!
- Mac’Allah!
– protestou com veemência o rei. – Não acredito em semelhante coisa! Não posso
admitir que um homem, seja ele um emir ou simples caravaneiro, viva noventa
anos e mais sete anos sem causar a seus semelhantes infinitas contrariedades!
Ah! Isso não! Deyman! Abadan! Em
tempo algum!
O velho, que ouvira com invejável
serenidade as imprecações do monarca, tornou com seu tranqüilo falar:
- As objeções que acabais de formular, ó
rei, colocam-me, neste momento, em sérias dificuldades. Devo aceitar as vossas
objeções? Cumpre-me recusá-las? Não posso, é evidente, concordar com a vossa
opinião, pois isso implicaria confessar que já contrariei alguém. Não quero,
porém, contrariar-vos, para não ferir um preceito para mim inviolável!
E depois de ligeira pausa de vergonhoso
embaraço, rematou num gesto burlesco de credulidade:
- Mas, afinal, admito que a razão esteja de
vosso lado. Não se pode viver, neste mundo de dúvidas e incertezas, noventa
anos e mais sete anos sem contrariar centenas de crentes e milhares de infiéis!
- Ó homem admirável! – exultou o rei, com
alvoroço. – Os grandes tesouros dos velhos são a prudência e o saber! Preferiste
passar por mentiroso a causar leve contrariedade àquele que negava o vosso
preceito. Com um gênio assim, chegareis, se Alá quiser, aos 197 anos...
Novas Lendas Orientais;Malba
Tahan, 13ª; Rio de Janeiro; Bestseller; 2009(pág. 113 a 115)