A CALÚNIA
MALBA TAHAN
O Juiz Hossein El-Gabata, certo de que a
audiência, naquela manhã, estava já terminada, fechou o livro da Lei, ergueu os
óculos que lhe pesavam sobre o nariz, e levantou-se, com o seu vagar costumeiro
ao preparar-se para deixar o tribunal.
Doutor juiz –
exclamou o acusador público, aproximando-se respeitosamente, - a velha
caluniadora, presa ontem ainda não foi julgada e espera a vossa sentença.
Só então notou o
velho magistrado que ainda aguardava julgamento uma anciã esquecida, postada no
fundo da sala. Sentou-se contrariado e, com um aceno de mão, ordenou que a
última acusada se aproximasse da mesa.
- Estou inocente,
ó venerável cádi – exclamou, soluçando, a mulher. – Não cometi crime algum. Sou
vítima da inveja de meus inimigos!
- Doutor juiz –
interveio tranquilo o promotor – essa mulher, segundo tive ocasião de
verificar, é uma caluniadora terrível. Raro é o dia em que a sua imaginação
maldosa não inventa uma nova torpeza com a qual fere e mutila a honra e o
renome de uma pessoa digna. Ainda ontem assacou uma calúnia contra o nosso bom
amigo, o cheique Nasil El-Hainé, que se acha, por esse fato, com a saúde
fortemente abalada. Em benefício da tranquilidade deve ela sofrer castigo
severo que, servindo-lhe de ensinament, possa forçá-la a deixar para sempre, em
paz, os homens de bem, fazendo-a compreender a anormalidade do crime que
pratica.
O judicioso
Hossein El-Gabata, ao ouvir as palavras do acusador, meditou durante alguns
instantes com o olhar fixo sobre o Livro de Allah. Que deveria fazer para
arrancar do coração daquela mulher o germe do odiento pecado? Como
demonstrar-lhe a gravidade do mal que provém da calúnia?
Tomou, afinal, o
magistrado, de um pedaço de papel e nele
escreveu lentamente o nome honrado do cheique Nassil El-Heiné. Isso feito
entregou o papel à acusada e disse-lhe:
- Aqui está
escrito o nome da última pessoa vítima da tua língua peçonhenta. Rasga este
papel em pedaços tão pequenos que cada um deles possa ser oculto debaixo de um
grão de milho.
Surpreendida,
embora, por aquela estranha ordem, a mulher obedeceu sem vacilar. O cádi e os
auxiliares do tribunal viram-na algum tempo entregue, reduzindo-o a pedacinhos
extremamente pequenos.
- Irás agora –
ordenou o juiz – até a última casa da cidade e deixarás cair, ao acaso, pelo
caminho, esses pedacinhos de papel. Feito isso voltarás novamente à minha
presença a fim de que eu possa lavrar a sentença.
Algumas horas
depois a mulher apresentava-se ao velho magistrado, declarando que havia
cumprido a ordem que lhe fora dada.
Disse então, o
juiz em tom severo:
- Volta novamente
pelo mesmo caminho, apanha, um por um, todos os pedacinhos de papel e procura
com eles formar o nome despedaçado. Se não conseguires isso, receberás cem
chibatadas.
- Piedade senhor
cádi! Exclamou a mulher tomada de vivo desespero. – Por Allah! Ser-me-ia
impossível achar pelas ruas, praças e estradas os pedacinhos que atirei fora,
por isso que não cuidei de observar onde caíam quando me desfazia deles. E o
vento já os levou com a areia; estarão mais queimados ou perdidos para sempre.
- Mulher indigna! –
exclamou, exaltado, o juiz – implora agora piedade e outra coisa não fazes
senão esfrangalhar, pela calúnia, a honra alheia e atirar-lhes os pedaços ao
sabor de maledicência. O cheique Nassil tinha um nome íntegro e tu, com falsas
imputações, conseguiste destruí-lo. Assim como é impossível reconstituir, com
os pedacinhos de papel atirados ao acaso, o nome estracinhado*, também não há
poder humano que consiga desfazer a obra mutiladora da calúnia.
E, voltando-se
para os guardas e ajudantes ajuntou:
- A minha sentença
está dada! O caluniador não é digno de perdão. Assim determinou o Livro de
Deus.
*estraçalhado