LUIS
FERNANDO VERÍSSIMO
Ed Mort. Detetive particular. Está na plaqueta. Durante meses ninguém
entrara no meu escri- escritório é uma palavra grande demais para descrevê-lo –
a não ser cobradores, que eram expulsos sob ameaças de morte ou coisa pior. De
repente, começou o movimento. Entrava gente o dia inteiro. Gente diferente. Até
as baratas* estranharam e fizeram bocas. Não levei muito tempo para saber o que
tinha havido. Alguém trocou minha plaqueta com a da escola de cabeleireiros, ao
lado. A escola de cabeleireiros passou o dia vazia. Voltaire, o ratão albino,
que subloca um canto da minha sala, emigrou para lá. Quando recoloquei a
plaqueta no lugar, Voltaire voltou. Ele gosta de sossego. Mort. Ed Mort. Está
na plaqueta certa.
Eu estava pensando no meu jantar da
noite passada – isto é, em nada – quando ela entrou. Nem abri os olhos. Disse:
“A escola de cabeleireiros é ao lado”. Mas quando ela falou, abri os olhos
depressa. Se sua voz pudesse ser engarrafada seria vendida como afrodisíaco.
Ela não queria a escola de cabeleireiros.
– Preciso encontrar meu marido.
– Claro – disse eu. – Vá falando que
eu tomo nota.
Meu bloco de notas fora levado pelas
baratas. Uma ação de efeito psicológico. O bloco não lhes serviria para nada.
Só queriam me desmoralizar. Peguei o cartão que um dos pretendentes a
cabeleireiro deixara em cima da minha mesa, com um olhar insinuante, no dia
anterior. Tenho um certo charme rude, não nego. Sou violento. Sorrio para o
lado. Uso costeletas. No cartão estava escrito Joli Decorações e um nome,
Dorilei. Virei do outro lado. Comecei a escrever enquanto ela falava. A Bic era
alugada.
– Não fui à polícia para evitar
escândalo. Meu marido é de uma família conhecida. Isso não pode sair nos
jornais.
Escrevi: “Linda. Linda !”
– Somos muito ricos. Meu marido vive
de rendas. Desapareceu há uma semana.
Escrevi: “Se eu conseguir que ela
prove o meu fettucine, está no papo”. Ela disse:
– Ele saiu para devolver um anjo
barroco a uma loja de decorações. Descobriu que o anjo era falso. A loja se
chamava Joli Decorações.
Escrevi: “Epa !” Era o nome do
cartão. Pedi para ela esperar e fui até a escola de cabeleireiros, ao lado.
Dorilei estava tendo trabalho para dominar o boufant.
Recebeu-me com um sorriso brejeiro.
Agarrei-o, com dificuldade, pela camiseta colant. A escola de cabeleireiros
estava cheia. Houve gritos. Senti que alguém tentava me arranhar por trás.
Dei-lhe um cotovelaço. Bateu no medalhão. Doeu, mas doeu mais nele. Com o rabo
do olho vi que outro se aproximava aos pulos. Estava armado com um pente
elétrico. Derrubei um secador de cabelo no seu caminho. Fiz Dorilei rodopiar e
o usei como escudo, ameaçando quebrar os seus dois pulsos. Isto os deteve.
Mandei Dorilei falar, e depressa. Qual era a sua ligação com a Joli Decorações?
– Trabalhei lá até ontem. Não pude
continuar. O ambiente! Por isso vim aprender a ser cabeleireiro.
O dono da Joli Decorações tinha se
metido numa encrenca. Vendera um anjo barroco falso a um ricaço. O ricaço
ameaçara denunciá-lo. Tinham se trancado no escritório de Randal, o dono,
durante horas. Uma briga feia. No fim, saíram do escritório e da loja.
– Os dois juntos?
– Juntinhos.
Randal tinha um sítio em Teresópolis.
O endereço foi a última informação que tirei de Dorilei, antes de atirá-lo
contra a parede. Saí sob vaias. Gente intolerante. Mort. Ed Mort. Está na
plaqueta.
Um detetive particular deve ter o
poder da dedução. Deve procurar pistas e segui-las, não importa o risco. Mas às
vezes a coincidência ajuda. Disse para ela que sabia onde procurar seu marido.
Ela se atirou nos meus braços. As baratas, revoltadas, fizeram uma pequena
dança de protesto. Voltaire nem olhou. Ela insistiu em ir comigo para
Teresópolis. Iríamos no seu carro. O meu estava num estacionamento e eu não
tinha dinheiro para pagar a estada. Três anos. Eu às vezes ia visitá-lo e
chutar os pneus. Sou assim. Sentimental. Sei lá.
No caminho para Teresópolis,
discutimos o caso. O marido poderia ter sido seqüestrado. Ou então – foi ela
mesmo quem disse – eliminado, para não contar o que sabia sobre o anjo barroco.
Talvez existisse uma quadrilha de falsificadores de anjos. Como o marido era
bem relacionado no meio de compradores de antigüidades, uma palavra sua podia
arruinar os falsificadores. Sugeri que avisássemos à polícia. Ela disse que
confiava em mim. Perguntou se eu estava armado. Respondi que sim. Meu 38 estava
empenhado, mas canivete também é arma. Pensei: se eu morrer por ela, ela será
minha devedora. Mas eu não estarei aqui para cobrar. Sorri com o lado da boca
que ela podia ver, mas o outro lado pendeu de preocupação. Paradoxo. Perigo.
Mamãe disse que eu devia estudar contabilidade.
Não foi preciso chegar até a casa. De
uma colina, avistamos o jardim. Randal e o marido dela caminhavam entre os
canteiros floridos. Estavam de mãos dadas.
Na volta ao Rio, ela não disse nada.
Pensei em convidá-la a deixar aquela vida – apartamento na Vieira Souto,
empregados, iates, viagens à Europa, aquela sujeira – e se juntar a mim. Meu
fettucine com vinho Boca Negra a faria esquecer tudo. Tenho tudo que o Agnaldo
Timóteo já gravou e ainda vou comprar uma eletrola. Perguntei se ela
abandonaria o marido. Ela riu e perguntou se eu estava doido. Deixou-me na
galeria. Esqueci de cobrar pelo trabalho.
O escri estava todo revirado. Frases
escritas a batom nas paredes. A vingança dos cabeleireiros. As baratas só
esperavam para ver a minha cara. Voltaire mudou-se para a loja de carimbos.
Mort. Ed Mort. Estava na plaqueta, mas o Dorilei atirou no chão e sapateou em
cima.
(extraído de “Ed Mort e Outras
Histórias”)
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