AS
ROSAS DE AGOSTO
MAURO SANTAYANA
"Guardei-a, até que se desfez, aquela
rosa de agosto", conta-me a amiga de Madri. "Procurei, depois, uma
fotografia sua, mas os pais desapareceram de Zamora. Não sei se viveram muito
depois disso: ela era a única filha. Eles se haviam casado tarde. Não creio que
arranjassem, em qualquer lugar do mundo, um pouco que fosse de alegria."
A amiga de Madri era menina durante a
Guerra Civil. Antes que fizesse 11 anos, os fascistas tomaram a cidade e Maria
foi presa.
“Nós éramos muito amigas. Ela me ensinava
as coisas. Tinha um ano a mais. O corpo começava a tomar formas de mulher. E eu
lhe invejava os seios que nasciam. Mas era maior em muitas outras coisas. Fazia
versos. Recitava-os. Não eram versos piedosos ou bonitinhos. Falavam de
justiça, de paz, de igualdade. Não foram os pais que lhe ensinaram coisas
assim. Eu acho que ela descobriu sozinha, ou aprendeu com um de seus
professores no colégio, que era socialista"
A amiga não se lembra se foi no aniversário
da instauração da República ou em outra data nacional que houve o desfile. Deve
ter sido em abril, porque a Frente Popular estava no poder. Maria foi escolhida
para levar o estandarte. Estava muito bonita, as cores do rosto realçadas pela
pintura discreta.
“Eu mesma ajudei a arrumá-la. Depois
marchamos pela avenida principal, ela à frente, levando a bandeira. Na porta do ayuntamientoparamos
e houve discursos. Maria subiu até o estrado, agitou a bandeira e gritou “Viva
a República!”. Depois a formação se dissolveu e fomos juntas levar o estandarte
ao colégio. "
Maria, conta a amiga, lia muito e era, na
sua classe, das mais adiantadas. As meninas ricas olhavam-na de lado porque era
bela, inteIigente, solta. Os pais eram comerciantes pobres, tão discriminados
na sociedade daquele tempo como os trabalhadores. Possuíam pequeno armazém,
onde vendiam vinho e azeite a granel. As vezes Maria ficava no balcão, para que
os dois pudessem sair juntos.
“Quando os fascistas tomaram Zamora, um
grupo da 'Falange' prendeu Maria, de madrugada. Eu soube depois que estava,
entre eles, um irmão do padre de nossa paróquia, que uma vez jogara um ‘piropo’
a Maria, e ela lhe disse que o dirigisse ao senhor cura, que também usava
saias. Era um rapaz esquisito, de espinhas na cara, que não era de andar com
amigos nem de fazer 'piropos' normalmente. Eu acho que ele se atreveu naquele
dia porque Maria e eu vínhamos do campo e atravessávamos sozinhas a ponte. Pois
bem, ele fazia parte da 'Falange' e a gente não sabia. Prenderam Maria e a
levaram para uma casa de freiras. Das freiras que tomavam conta do hospital.
Ali a fecharam em um quartinho e, em agosto, a fuzilaram... "
Minha amiga de Madri se chama Libertad.
Mas, a partir de 1936, com o triunfo de Franco, mudaram-lhe o nome para Luísa.
Por ordem das autoridades, os oficiais de registro civil rasuraram os livros de
nascimentos, trocando nomes como Libertad, Alba, Alegria. Isso sem falar nos
nomes bascos, por nomes bem católicos. "Soledad podia, mas Libertad,
não." A minha amiga de Madri sorri.
“Mas, na escola, meus amigos continuaram a
chamar-me Liber, como sempre. Eu, distraída, ganhava faltas porque não
respondia ‘presente' na hora da chamada. Oficialmente continuo sendo Luísa até
hoje mas nunca assinei este nome. Usei sempre de uma saída esperta: abreviava o
Luísa com o ‘L” de Libertad."
Maria morreu em um domingo, juntamente com
outros, e pela madrugada. "Eu acordei com os tiros regulares, que vinham
do cemitério. Ouvíamos tantos tiros pela madrugada que eu não podia saber que
um daqueles se disparava contra o coração de minha amiga. No dia seguinte, os
pais, só os pais, foram autorizados a vestir o corpo e a enterrá-lo. Meu pai e
minha mãe me contaram e me disseram que chorasse escondida em meu quarto. Não
chorei. Fui ao jardim, apanhei a rosa, a maior e mais vermelha de todas as que
havia naquele agosto. Guardei-a até que suas pétalas se desfizeram com o tempo.
"