Get me outta here!

sábado, 31 de janeiro de 2015

SÉRGIO PORTO (STANISLAW PONTE PRETA) - A CASA DEMOLIDA

A CASA demolida
Sérgio Porto
(Stanislaw Ponte Preta)
     SERIAM ao todo umas trinta fotografias. Já nem me lembrava mais delas, e talvez que ficassem para sempre ali, perdidas entre papéis inúteis que sabe lá Deus por que guardamos.
     Encontrá-las foi, sem dúvida, pior e, se algum dia imaginasse que havia de passar pelo momento que passei, não teria batido fotografia nenhuma. Na hora, porém, achara uma boa idéia tirar os retratos, única maneira — pensei — de conservar na lembrança os cantos queridos daquela casa onde nasci e vivi os primeiros vinte e quatro felizes anos de minha vida.
     Como se precisássemos de máquina fotográfica para guardar na memória as coisas que nos são caras! 
     Foi nas vésperas de sair, antes de retirarem os móveis, que me entregara à tarefa de fotografar tudo aquilo, tal como era até então. Gastei alguns filmes, que, mais tarde revelados, ficaram esquecidos, durante anos, na gaveta cheia de papéis, cartas, recibos e outras inutilidades.
    Esta era a escada, que rangia no quinto degrau, e que era preciso pular para não acordar Mamãe. Precaução, aliás, de pouca valia, porque ela não dormia mesmo, enquanto o último dos filhos a chegar não pulasse o quinto degrau e não se recolhesse, convencido que chegava sem fazer barulho.
     A ideia de fotografar este canto do jardim deveu-se — é claro — ao banco de madeira, cúmplice de tantos colóquios amorosos, geralmente inocentes, que eram inocentes as meninas daquele tempo. Ao fundo, quase encostado ao muro do vizinho, a acácia que floria todos os anos e que a moça pedante que estudava botânica um dia chamou de "linda árvore leguminosa ornamental". As flores, quando vinham, eram tantas, que não havia motivo de ciúmes, quando alguns galhos amarelos pendiam para o outro lado do muro. Mesmo assim, ao ler pela primeira vez o soneto de Raul de Leoni, lembrei-me da acácia e lamentei o fato de ela também ser ingrata e ir florir na vizinhança.
      Isto aqui era a sala de jantar. A mesa grande, antiga, ficava bem ao centro, rodeada por seis cadeiras, havendo ainda mais duas sobressalentes, ao lado de cada janela, para o caso de aparecerem visitas. Quando vinham os primos recorria-se à cozinha, suas cadeiras toscas, seus bancos... tantos eram os primos!
     Nas paredes, além dos pratos chineses — orgulho do velho — a indefectível "Ceia do Senhor", em reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido.
     Além das três fotografias — da escada, do jardim e da sala de jantar — existem ainda uma de cada quarto, duas da cozinha, outra do escritório de Papai. O resto é tudo do quintal. São quinze ao todo e, embora pareçam muitas, não chegam a cumprir sua missão, que, afinal, era retratar os lugares gratos à recordação.
    O quintal era grande, muito grande, e maior que ele os momentos vividos ali pelo menino que hoje olha estas fotos emocionado. Cada recanto lembrava um brinquedo, um episódio. Ah Poeta, perdoe o plágio, mas resistir quem há-de? Gemia em cada canto uma tristeza, chorava em cada canto uma saudade. Agora, se ainda morasse na casa, talvez que tudo estivesse modificado na aparência, não mais que na aparência, porque, na lembrança do menino, ficou o quintal daquele tempo.
    Rasgo as fotografias. De que vale sofrer por um passado que demoliram com a casa? Pedra por pedra, tijolo por tijolo, telha por telha, tudo se desmanchou. A saudade é inquebrantável, mas as fotografias eu também posso desmanchar. Vou atirando os pedacinhos pela janela, como se lá na rua houvesse uma parada, mas onde apenas há o desfile da minha saudade. E os papeizinhos vão saindo a voejar pela janela deste apartamento de quinto andar, num prédio construído onde um dia foi a casa.
     Olha, Manuel Bandeira: a casa demoliram, mas o menino ainda existe.
     Texto extraído do livro "A casa demolida", Editora do Autor — Rio de Janeiro, 1963, pág. 09.

Sobre este livro, disse o autor: "Este livro é, ao mesmo tempo, uma continuação, uma variação e uma nova edição de "O Homem ao Lado", o primeiro e único livro de crônicas que publiquei com meu verdadeiro nome. Explico: uma continuação porque nestas páginas o leitor encontrará várias crônicas que deixei de publicar na edição de "O Homem ao Lado"; uma variação porque as crônicas comuns aos dois livros foram — quase todas — revistas, reduzidas umas, ampliadas outras; e nova edição porque talvez 40% das crônicas de "A Casa Demolida" figuraram nas páginas de "O Homem ao Lado".
A época em que foram escritas é comum aos dois livros, isto é, entre os anos de 1952 e 1955, salvo uma ou outra de tempo mais recente que achei por bem incluir nesta nova coletânea. Enumerar os jornais e revistas onde foram publicadas seria fastidioso, tantos e tais foram os jornais e revistas nos quais colaborei."

Com este texto homenageamos o caro escritor Sérgio Porto, na passagem dos 40 anos de seu falecimento (29/09/1968).

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ESOPO - AS FORMIGAS E O GAFANHOTO -

FÁbulas de Esopo Ilustradas
As Formigas e o Gafanhoto
Autor: Esopo 
                  Sem dar o Primeiro Passo não se Chega a Lugar Algum

                                                  
                                            Para o Preguiçoso todo dia é chuvoso...

    Num brilhante dia de outono, uma famí­lia de formigas se apressava para aproveitar o calor do sol, colocando para secar, todos os grãos que haviam coletado durante o verão.
    Então um Gafanhoto faminto se aproximou delas, com um violino debaixo do braço, e humildemente veio pedir um pouco de comida.
   As formigas perguntaram surpresas: "Como? Então você não estocou nada para passar o inverno? O que afinal de contas você esteve fazendo durante o último verão?"
     E respondeu o Gafanhoto: "Não tive tempo para coletar e guardar nenhuma comida, eu estava tão ocupado fazendo e tocando minhas músicas e modinhas, que sequer percebi que o verão chegava ao fim."
 As Formigas encolheram seus ombros indiferentes, e disseram: "Fazendo música, todo tempo você esteve? Muito bem, agora é chegada a hora de você dançar!"
  E dando as costas para o Gafanhoto continuaram a realizar o seu trabalho.

Moral da HistÓria:
Há sempre um tempo para o trabalho, e um tempo para a diversão.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

TRINDADE COELHO - A CHOCA

A CHOCA
 Trindade Coelho, Os Meus Amores, Lisboa, 1891



Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de ouro a mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe, – e lá dentro, qual deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no velho cesto de palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam, debaixo da asa materna.
 Eles mesmos tinham estranhado recolher tão cedo aquela tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras galinhas atribuía isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo, metia dó com tamanho sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa operação que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam muito dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas, fora o mesmo que nada, – e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa pena, mas quase seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer, afligia-a como se fosse um estigma, – tanto ou mais que a própria doença...
Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo terreiro, gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.
 Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do poleiro, sentia-as agora cacarejar, – e não tardaria que o milho do recolher, que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil, alvoroçasse no prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia entre todas rixas alegres, o bando das companheiras...
Só ela, doente, quase já não sabia o que era comer; – e ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha de água que um ou outro dos seus pintainhos, bebericando na pia, deixava, depois de saciado, cair do biquinho como uma pérola.
Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a gosma, e não podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a ouvirem os filhos, para os admoestar, para os dirigir, – quanto mais para uma dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua fama de cantadeira! Galos que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantas rivais, ralhos, intrigas, combates, – como tudo isso ia longe, agora! Nos bebedouros, ela mesma se namorara da sua figura esbelta, muitas vezes; – e que o não adivinhara na devoção dos galos, de tantos que a tinham amado, e que ao aclarar das manhãs, todos os dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda, – adivinhara-o na inveja das outras, esse prestígio mágico da sua beleza...
Certo galo, sobretudo, agora já velho, – e, como ela, agora já também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara; e agora mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho e trôpego apaixonado (mas belo, ainda assim, na sua justa decrepitude) não tardara a recolher-se também. Subtil, passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave a um canto do poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença também, – quem lhe dizia a ela, entretanto, que ele se não recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por um impulso de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu velho amor?!
Pelo que respeitava às companheiras, as da sua geração eram já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da mocidade, do que lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela, – e, sobretudo, não era já dela que tinham ciúmes...
De resto, ela mesmo era boa companheira; e tirante algum fogacho de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro; – e muitos pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os frangos, uma vez por outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.
Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara a ninhada com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem paciência para aturar os filhos, ignorava se seria por isso, se por a verem talvez doente, que eles mesmos, coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!
...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos, o melhor que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus pequeninos, – e agora, por certo, todos a dormir e talvez sonhando..