Pechada
Luis Fernando Veríssimo (novaescola@fvc.org.br)
O apelido foi instantâneo. No
primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de
"Gaúcho". Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com
um sotaque carregado.
— Aí, Gaúcho!
— Fala, Gaúcho!
Perguntaram para a professora por que
o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região tinha seu
idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam
português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam
formidável que num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só
com pequenas variações?
— Mas o Gaúcho fala "tu"! —
disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.
— E fala certo — disse a professora.
— Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão
certos. Os dois são português.
O gordo Jorge fez cara de quem não se
entregara.
Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula
e explicou para a professora o que acontecera.
— O pai atravessou a sinaleira e
pechou.
— O que?
— O pai. Atravessou a sinaleira e
pechou.
A professora sorriu. Depois achou que
não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma sinaleira e
pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado.
Com pedaços de sinaleira sendo
retirados do seu corpo.
— O que foi que ele disse, tia? —
quis saber o gordo Jorge.
— Que o pai dele atravessou uma
sinaleira e pechou.
— E o que é isso?
— Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo:
explique para a classe o que aconteceu.
— Nós vinha...
— Nós vínhamos.
— Nós vínhamos de auto, o pai não viu
a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro auto.
A professora varreu a classe com seu
sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava uma tradução
para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo
Jorge rindo daquele jeito.
"Sinaleira", obviamente,
era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas
"pechar" o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha
palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar" vinha
do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar
para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato.
Que já ganhara outro apelido: Pechada.
— Aí, Pechada!
— Fala, Pechada!
0 comentários:
Postar um comentário