A
IMPORTÂNCIA DO CONTO
Escrito por Luiz Felipe Silva
I remain convinced
that the really vital work, the evolutionary work that reshapes the [science
fiction] genre in its own image, is usually done at short-story length, and not
in the novels, in spite of the money and attention spent on them. Without the
work being done at shorter lengths, usually by ill-paid and under-appreciated
new young writers, the genre would eventually sicken and die.
Gardner Dozois
De todas as formas de narrativas
existentes, o conto é provavelmente a mais antiga, lugar que disputa somente
com os cantares trovadorescos e os poemas épicos. O seu reduzido tamanho e
capacidade de síntese tomaram-no no preferido da tradição oral, no tempo em que
a função do prosador, a de encantar, era imediatamente posta à prova perante o
seu público, e não recorria a estatísticas comerciais para que o seu valor
fosse reconhecido. Tratava geralmente de questões pontuais, de ordem moral ou
social, e era contado em redor das fogueiras, para olhos ansiosos, olhos das
crianças de todas as idades; o centro da atenção convergia lentamente do fogo
para o novo sol em intensificação, e, quando menos se
esperava, havia palavras a esvoaçar entre os corpos imóveis, de respiração
sustida, palavras unidas por laços, que se enrolavam em torno dos ouvintes, e a
eles também uniam. Depois, apareceu a folha de tecido seco, os líquidos
pigmentadores, os paus com bico de aparo, os pictogramas ideocontextuais, e as
regras de composição; os instrumentos estavam preparados, era só atribuir um
nome ao novo jogo: escrita.
Se a possibilidade de armazenarmos,
na íntegra, os originais das narrativas nos permitiu que houvesse uma maior
diversificação das mesmas, sem que fossem adulteradas através das repetições
sucessivas (intocabilidade que atualmente só se encontra limitada pelo
obstáculo da tradução), permitiu igualmente que elas crescessem, que se
desenvolvessem e tornassem complexas, e que nascesse uma nova profissão de
artesãos especializados, os escritores. Note-se, porém, a mudança que ocorreu:
antigamente, as narrativas eram personalizadas — aquele que contava, adequava a
história às exigências do momento e das gentes que o ouviam, e transmitia-lhes
a versão que mais lhe diria respeito — mas também eram sociais, não se dirigiam
especificamente a cada ouvinte, mas ao conjunto do grupo em que este se
inseria. Depois, com o advento da escrita, conhecer a história tornou-se num
ato individualista: havia que lê-la, que obsorvê-la com o espírito curioso. E
porque não havia adulterações à forma original, as vozes narradoras eram
igualmente individualistas; não tocavam os corações de todos os leitores... mas
quando o faziam, o prazer era maior e mais pessoal — como se o leitor acabasse
de encontrar uma alma gêmea que falava a mesma linguagem da alma e compreendia
o que lhe ia no íntimo.
As vozes individualistas começaram a
falar, e não se calaram. As suas histórias cresciam, em volume e em densidade
e, quanto mais se dizia, mais parecia faltar para transmitir. A invenção da
imprensa provocou somente uma cena agitação no meio, principalmente no início,
pois os povos não se encontravam preparados para receber a dádiva das palavras
empalhadas, e olhavam com irritação para a elite denominada culta,que, de tanto
apreciar o exclusivismo, já exibia os seus conhecimentos como pavões: apenas
para dar nas vistas. O que realmente revolucionou a escrita foi o aparecimento
do papel de baixo preço. O livro perdeu o seu porte sagrado, e tornou-se num
objeto do dia-a-dia, portável, um amigo que nos proporcionava algumas horas de
prazer.
E, perdido no meio de todo o
processo, o conto perdeu o lugar de rei.
Porque tem o romance a primazia sobre
as formas de prosa? Para percebermos a resposta, temos de atentar à
característica que o individualiza, e que é o tamanho. Um romance de ficção científica,
por exemplo, é considerado tradicionalmente como qualquer história com mais de
40 000 palavras. Estatisticamente, a dimensão média da maioria dos romances
publicados situar-se-á em redor das 80 000 ou 90 000 palavras. Isso constitui
espaço para criação! Histórias assim extensas podem comportar uma variedade de
personagens, de cenários, de enredos e subenredos, e até de próprios estilos,
que as formas mais curtas de prosa não conseguem; podem, principalmente, manter
um ritmo de desenvolvimento que faça o leitor entranhar-se na carne e no
espírito do narrador, que o faça conhecer a personagem, simpatizar com ela, e
preocupar-se verdadeiramente com o que lhe acontece.
No conto, tentar apresentar, de um
modo resumido, uma narrativa que exija um tratamento mais avantajado, resulta
para o leitor em tanta frustração, como introduzir descrições longas e
elaboradas num romance de acção. Não seria de surpreender se, no fim, o leitor
acabasse por atirar o livro para o chão, tamanho seria o desagrado.
O que se adequa à função exemplar do
conto são histórias com uma focagem muito concentrada, onde se movimentam
poucas personagens num reduzido número de cenários. São construídas, como nos
velhos dias, em torno de uma mensagem ou de uma ideia central, cuja presença se
sente muito intensamente (os romances também contêm uma mensagem semelhante,
que, no entanto, se encontra «diluída» ao longo da sua extensão). Não necessita
de ser clara, nem simples. Desde os tempos do surrealismo e do verso livre que
deixou de ser obrigatório explicar tudo ao leitor.
Da parte de quem escreve, o conto é
um excelente exercício de discurso. Devido à sua brevidade, certos estilos
podem ser experimentados, sem se tornarem cansativos; ideias que resultariam
absurdas ou artificiais, ou cuja simplicidade não requer desenvolvimento,
tornam-se interessantes e, possivelmente, provocantes — fato que não
aconteceria, se fossem elas temas de longos romances; e, principalmente, é o
instrumento primário do jovem aprendiz, ainda incerto da sua pena (nos dias que
correm, leia-se: da sua digitação no teclado), de que usa e abusa para polir as
arestas da prosa.
Para os escritores de ficção, em geral,
o trabalho é extremamente facilitado. Não têm de detalhar a época em que a ação
ocorre, confiando na capacidade de reconhecimento dos leitores; não têm de
explicar o que é e como funciona um telefone, ou um carro, ou sequer de
mencionar para que serve a televisão (quem pensaria nisso há um século?).
Existe até a ideia preconcebida que os elementos do meio ambiente não devem
sequer ser incluídos na narrativa, e que os personagens não tenham qualquer
relação significativa com os mesmos, apenas entre si — uma noção absurda, pois,
na vida real, os nossos dias são passados a interagir com objetos e com os
agentes ambientais que nos rodeiam. Os escritores de ficção, em geral, precisam
apenas de preocupar-se com o estilo e o desenvolvimento interior, sentimental,
dos personagens de primeiro plano, e de fazerem valer a mensagem a transmitir.
Outros,
como os escritores de ficção científica, não têm tanta sorte. Por definição, as
histórias de FC precisam de ocorrer em manifestações socioculturais que nenhum
povo da Terra tenha experimentado até então; frequentemente, essas
manifestações situam-se num futuro possível. Como, então, no breve espaço de
manobra permitido pelo conto, descrever os vários aspectos de uma sociedade
inventada?
A resposta é: uma notável capacidade
de síntese. Ou, de outro modo, parte-se de uma sociedade com alterações muito
básicas; a síntese, nesse caso, situa-se no enfoque estreito em cima da ação e
da localização da narrativa.
O ideal será, evidentemente,
conseguir uma perfeita mistura de estilo-enredo-ambiente, que, formando um todo
unido, tenha presentes os fatores principais da FC: regiões inexploradas,
sentido da descoberta, e o rigor científico subjacente à ocorrência dos
acontecimentos. Apesar de os romances constituírem portas abertas para esses
admiráveis mundos novos (que poderão nada mais ser que a mera mente alienígena
dum extraterrestre de visita ao nosso planeta), os contos são as janelas
através das quais espreitamos, para termos uma ideia do que iremos encontrar,
antes de penetrarmos pelas portas. E são essas janelas, que convidam as cores
dos céus que encimam o horizonte dos planetas inexplorados, as primeiras a
serem abertas, pela manhã, cortinas puxadas para o lado, e vidros corridos, de
modo a deixar entrar o ar do dia que nasce, e expulsar o da noite. A citação de
Dozois, no início, sumariza exemplarmente esta ideia. Quando a literatura
avança, o passo é sempre pequeno, a experimentar o terreno, porque é grande o
risco. Maiores passos serão dados, em seguida, quando a confiança for
ganha.
Em FC, esses
passos estão sempre a ser dados: está-lhe no sangue, ir em frente. Ela é a
literatura rebelde e indomável. E nós, que a amamos, não conseguimos coibir-nos
de seguir-lhe no encalço.
Luís Filipe Silva é escritor português de Ficção Científica e Fantástico, galardoado em 1991 com o Prêmio Editorial Caminho de Ficção Científica com a coletânea O FUTURO À JANELA. É autor do Ciclo da GalxMente, composto à data pelos romances CIDADE DA CARNE e VINGANÇAS, e colaborou com João Barreiros noTERRARIUM-Um, Romance em Mosaicos. Colaborou na área do Fantástico como crítico literário no Diário de Notícias e como organizador nos "Encontros de FC&F" da Associação Simetria e no colóquio "Mensageiros das Estrelas". Foi selecionado para constar da antologia «Creatures of Glass and Light» representativa da FC europeia em 2007. Tem contos publicados em diversas revistas e jornais portugueses, Espanha, Brasil e Sérvia, e na antologia luso-americana «Breaking Windows». Co-organizador, juntamente com Gerson-Lodi Ribeiro, de Vaporpunk - Relatos Steampunk Publicados Sob as Ordens de Suas Majestades, Editora Draco (Brasil). Membro do júri do Prémio Bang! de Literatura Fantástica promovido pela Saída de Emergência. Organizador de Pulp Fiction à Portuguesa, antologia de contos inéditos em língua portuguesa subordinada ao tema de pulp fiction. Finais de 2010 (Saída de Emergência). É gerenciador do site literário TecnoFantasia.com.
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