Get me outta here!

sábado, 27 de setembro de 2014

LUIZ FELIPE SILVA - A IMPORTÂNCIA DO CONTO

A IMPORTÂNCIA DO CONTO
Escrito por Luiz Felipe Silva 

 I remain convinced that the really vital work, the evolutionary work that reshapes the [science fiction] genre in its own image, is usually done at short-story length, and not in the novels, in spite of the money and attention spent on them. Without the work being done at shorter lengths, usually by ill-paid and under-appreciated new young writers, the genre would eventually sicken and die.
Gardner Dozois

De todas as formas de narrativas existentes, o conto é provavelmente a mais antiga, lugar que disputa somente com os cantares trovadorescos e os poemas épicos. O seu reduzido tamanho e capacidade de síntese tomaram-no no preferido da tradição oral, no tempo em que a função do prosador, a de encantar, era imediatamente posta à prova perante o seu público, e não recorria a estatísticas comerciais para que o seu valor fosse reconhecido. Tratava geralmente de questões pontuais, de ordem moral ou social, e era contado em redor das fogueiras, para olhos ansiosos, olhos das crianças de todas as idades; o centro da atenção convergia lentamente do fogo para o novo sol em intensificação, e, quando menos se esperava, havia palavras a esvoaçar entre os corpos imóveis, de respiração sustida, palavras unidas por laços, que se enrolavam em torno dos ouvintes, e a eles também uniam. Depois, apareceu a folha de tecido seco, os líquidos pigmentadores, os paus com bico de aparo, os pictogramas ideocontextuais, e as regras de composição; os instrumentos estavam preparados, era só atribuir um nome ao novo jogo: escrita. 
Se a possibilidade de armazenarmos, na íntegra, os originais das narrativas nos permitiu que houvesse uma maior diversificação das mesmas, sem que fossem adulteradas através das repetições sucessivas (intocabilidade que atualmente só se encontra limitada pelo obstáculo da tradução), permitiu igualmente que elas crescessem, que se desenvolvessem e tornassem complexas, e que nascesse uma nova profissão de artesãos especializados, os escritores. Note-se, porém, a mudança que ocorreu: antigamente, as narrativas eram personalizadas — aquele que contava, adequava a história às exigências do momento e das gentes que o ouviam, e transmitia-lhes a versão que mais lhe diria respeito — mas também eram sociais, não se dirigiam especificamente a cada ouvinte, mas ao conjunto do grupo em que este se inseria. Depois, com o advento da escrita, conhecer a história tornou-se num ato individualista: havia que lê-la, que obsorvê-la com o espírito curioso. E porque não havia adulterações à forma original, as vozes narradoras eram igualmente individualistas; não tocavam os corações de todos os leitores... mas quando o faziam, o prazer era maior e mais pessoal — como se o leitor acabasse de encontrar uma alma gêmea que falava a mesma linguagem da alma e compreendia o que lhe ia no íntimo. 
As vozes individualistas começaram a falar, e não se calaram. As suas histórias cresciam, em volume e em densidade e, quanto mais se dizia, mais parecia faltar para transmitir. A invenção da imprensa provocou somente uma cena agitação no meio, principalmente no início, pois os povos não se encontravam preparados para receber a dádiva das palavras empalhadas, e olhavam com irritação para a elite denominada culta,que, de tanto apreciar o exclusivismo, já exibia os seus conhecimentos como pavões: apenas para dar nas vistas. O que realmente revolucionou a escrita foi o aparecimento do papel de baixo preço. O livro perdeu o seu porte sagrado, e tornou-se num objeto do dia-a-dia, portável, um amigo que nos proporcionava algumas horas de prazer. 
E, perdido no meio de todo o processo, o conto perdeu o lugar de rei. 
Porque tem o romance a primazia sobre as formas de prosa? Para percebermos a resposta, temos de atentar à característica que o individualiza, e que é o tamanho. Um romance de ficção científica, por exemplo, é considerado tradicionalmente como qualquer história com mais de 40 000 palavras. Estatisticamente, a dimensão média da maioria dos romances publicados situar-se-á em redor das 80 000 ou 90 000 palavras. Isso constitui espaço para criação! Histórias assim extensas podem comportar uma variedade de personagens, de cenários, de enredos e subenredos, e até de próprios estilos, que as formas mais curtas de prosa não conseguem; podem, principalmente, manter um ritmo de desenvolvimento que faça o leitor entranhar-se na carne e no espírito do narrador, que o faça conhecer a personagem, simpatizar com ela, e preocupar-se verdadeiramente com o que lhe acontece.
No conto, tentar apresentar, de um modo resumido, uma narrativa que exija um tratamento mais avantajado, resulta para o leitor em tanta frustração, como introduzir descrições longas e elaboradas num romance de acção. Não seria de surpreender se, no fim, o leitor acabasse por atirar o livro para o chão, tamanho seria o desagrado. 
O que se adequa à função exemplar do conto são histórias com uma focagem muito concentrada, onde se movimentam poucas personagens num reduzido número de cenários. São construídas, como nos velhos dias, em torno de uma mensagem ou de uma ideia central, cuja presença se sente muito intensamente (os romances também contêm uma mensagem semelhante, que, no entanto, se encontra «diluída» ao longo da sua extensão). Não necessita de ser clara, nem simples. Desde os tempos do surrealismo e do verso livre que deixou de ser obrigatório explicar tudo ao leitor. 
Da parte de quem escreve, o conto é um excelente exercício de discurso. Devido à sua brevidade, certos estilos podem ser experimentados, sem se tornarem cansativos; ideias que resultariam absurdas ou artificiais, ou cuja simplicidade não requer desenvolvimento, tornam-se interessantes e, possivelmente, provocantes — fato que não aconteceria, se fossem elas temas de longos romances; e, principalmente, é o instrumento primário do jovem aprendiz, ainda incerto da sua pena (nos dias que correm, leia-se: da sua digitação no teclado), de que usa e abusa para polir as arestas da prosa. 
Para os escritores de ficção, em geral, o trabalho é extremamente facilitado. Não têm de detalhar a época em que a ação ocorre, confiando na capacidade de reconhecimento dos leitores; não têm de explicar o que é e como funciona um telefone, ou um carro, ou sequer de mencionar para que serve a televisão (quem pensaria nisso há um século?). Existe até a ideia preconcebida que os elementos do meio ambiente não devem sequer ser incluídos na narrativa, e que os personagens não tenham qualquer relação significativa com os mesmos, apenas entre si — uma noção absurda, pois, na vida real, os nossos dias são passados a interagir com objetos e com os agentes ambientais que nos rodeiam. Os escritores de ficção, em geral, precisam apenas de preocupar-se com o estilo e o desenvolvimento interior, sentimental, dos personagens de primeiro plano, e de fazerem valer a mensagem a transmitir. 
     Outros, como os escritores de ficção científica, não têm tanta sorte. Por definição, as histórias de FC precisam de ocorrer em manifestações socioculturais que nenhum povo da Terra tenha experimentado até então; frequentemente, essas manifestações situam-se num futuro possível. Como, então, no breve espaço de manobra permitido pelo conto, descrever os vários aspectos de uma sociedade inventada? 
A resposta é: uma notável capacidade de síntese. Ou, de outro modo, parte-se de uma sociedade com alterações muito básicas; a síntese, nesse caso, situa-se no enfoque estreito em cima da ação e da localização da narrativa. 
O ideal será, evidentemente, conseguir uma perfeita mistura de estilo-enredo-ambiente, que, formando um todo unido, tenha presentes os fatores principais da FC: regiões inexploradas, sentido da descoberta, e o rigor científico subjacente à ocorrência dos acontecimentos. Apesar de os romances constituírem portas abertas para esses admiráveis mundos novos (que poderão nada mais ser que a mera mente alienígena dum extraterrestre de visita ao nosso planeta), os contos são as janelas através das quais espreitamos, para termos uma ideia do que iremos encontrar, antes de penetrarmos pelas portas. E são essas janelas, que convidam as cores dos céus que encimam o horizonte dos planetas inexplorados, as primeiras a serem abertas, pela manhã, cortinas puxadas para o lado, e vidros corridos, de modo a deixar entrar o ar do dia que nasce, e expulsar o da noite. A citação de Dozois, no início, sumariza exemplarmente esta ideia. Quando a literatura avança, o passo é sempre pequeno, a experimentar o terreno, porque é grande o risco. Maiores passos serão dados, em seguida, quando a confiança for ganha. 
     Em FC, esses passos estão sempre a ser dados: está-lhe no sangue, ir em frente. Ela é a literatura rebelde e indomável. E nós, que a amamos, não conseguimos coibir-nos de seguir-lhe no encalço.


 Luís Filipe Silva é escritor português de Ficção Científica e Fantástico, galardoado em 1991 com o Prêmio Editorial Caminho de Ficção Científica com a coletânea O FUTURO À JANELA. É autor do Ciclo da GalxMente, composto à data pelos romances CIDADE DA CARNE VINGANÇAS, e colaborou com João Barreiros noTERRARIUM-Um, Romance em                  Mosaicos. Colaborou na área do Fantástico como crítico literário no Diário de Notícias e como organizador nos "Encontros de FC&F" da Associação Simetria e no colóquio "Mensageiros das Estrelas". Foi selecionado para constar da antologia «Creatures of Glass and Light» representativa da FC europeia em 2007. Tem contos publicados em diversas revistas e jornais portugueses, Espanha, Brasil e Sérvia, e na antologia luso-americana «Breaking Windows». Co-organizador, juntamente com Gerson-Lodi Ribeiro, de  Vaporpunk - Relatos Steampunk Publicados Sob as Ordens de Suas Majestades, Editora Draco (Brasil). Membro do júri do Prémio Bang! de Literatura Fantástica promovido pela Saída de Emergência. Organizador de Pulp Fiction à Portuguesa, antologia de contos inéditos em língua portuguesa subordinada ao tema de pulp fiction. Finais de 2010 (Saída de Emergência). É gerenciador do site literário TecnoFantasia.com.

0 comentários:

Postar um comentário