Get me outta here!

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

HANS CHRISTIAN ANDERSEN - A HISTÓRIA DE UMA MÃE -

A HISTÓRIA DE UMA MÃE
de Hans CHRISTIAN Andersen
adaptação: E. Pimentel

A Mãe estava sentada ao lado do berço do filhinho, muito triste e apreensiva, mão no rosto, temerosa de que ele morresse.  A criança, pálida, parecia dormir e respirava fracamente.
Ouviu baterem à porta e viu entrar por ela, sem que lha abrissem, um aparentemente, pobre velhinho, andrajoso, envolto em um cobertor preto com forte cheiro de enxofre. Trazia na mão direita uma foice e, na esquerda, uma ampulheta (ampulheta -  antigo apetrecho, feito de vidro e com areia dentro, que, antes da invenção do relógio, servia para marcar o tempo / horas). Era pleno inverno e o velho parecia tremer de frio. A geada era forte. A Mãe ofereceu-lhe uma caneca de café quente e o convidou a sentar-se ao seu lado, na lareira, para se aquecer. A criança dormia e o velho aproximou-se, postou-se ao lado dela e ficou balançando o berço, fitando profundamente o menino doente que agora respirava com dificuldade.
 - Não acha que ele vai sarar e que ficarei com ele? – perguntou-lhe a mãe.
– Não crê que Deus Nosso Senhor não o irá tirar de mim? - complementou. 
O velho, que era a própria Morte, balançou a cabeça de uma maneira estranha que tanto podia significar “sim" como "não".


A mãe, chorando, baixou os olhos e, como não pregava os olhos havia três dias, recostou-se a um canto e, exausta, cochilou. Depois de um breve instante acordou sobressaltada, tremendo de frio, e percebeu que o velho havia desaparecido com a criança.
  Ah ! antes fosse um sonho, pensou a mãe, ou até mesmo um pesadelo. Mas não - era a mais pura realidade.
    Assim, a mãe saiu correndo de casa, gritando por seu filho e viu, lá fora, na escuridão, uma coisa esquisita, de longas asas, que  estava sentada no meio da lama, tentando alçar vôo.

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– A Morte esteve no seu quarto  – disse a coisa. Vi-a sair apressada, levando seu filho. Ela corre mais rápido que a luz e nunca traz de volta o que leva.
– Mostre-me apenas o caminho que ela tomou e irei em seu encalço, disse a mãe, aflita.
– Conheço o caminho, mas se quer que o ensine, terá de cantar para mim todas as canções de ninar que cantava para o seu filho. Gosto de ouvi-las. Sou a Noite.
– Cantarei todas – disse a Mãe. Mas não me detenha, pois preciso alcançar a Morte e recuperar o meu filho.
A Noite permaneceu em silêncio. A Mãe, então, começou a cantar todas as canções de ninar que conhecia. Eram muitas as canções. Terminou, e finalmente a Noite mostrou-lhe o caminho dentro do escuro pinheiral. E a Mãe embrenhou-se nele. 
Mas, no mais profundo do pinheiral o caminho bifurcava-se e ela, não sabendo para que lado seguir, tonta de sono e com os olhos já embaçados, perguntou a um arbusto espinhoso, sem folhas nem flores, com os galhos revestidos de gelo:
– Arbusto, por acaso não viu a Morte passar por aqui, levando meu filhinho ?
– Vi – respondeu o arbusto – mas só o direi se me aquecer junto ao seu coração. Estou morrendo de frio. Eu sou os espinhos da vida. Lá na Eternidade, para onde você vai,  reside a Morte.
Atendendo a proposta a mãe apertou o arbusto contra o peito, e os espinhos penetraram em sua carne. O arbusto reviveu e brotou, e cobriu-se de folhas verdes e de flores, tal era o calor que brotava daquele coração de Mãe. Ato seguinte, seguindo o caminho indicado por ele, a Mãe chegou a um grande lago onde o caminho acabava.
Para atravessá-lo, tinha que sorver toda a sua água. A desesperada Mãe abaixou-se e começou a beber. Era impossível, mas esperava que, por milagre, pudesse fazê-lo.

– Nunca conseguirá beber-me – disse-lhe o grande lago. - É melhor fazermos um trato. Gosto de colecionar pérolas e seus olhos são as pérolas mais claras e lindas que já vi. Se me der seus olhos, poderei carregá-la até o outro lado, para a Eternidade, para a grande estufa onde mora a Morte. Lá, flores e árvores representam vidas humanas. Sem os olhos humanos e apenas com o coração você conseguirá ver na Eternidade.
– Tudo farei para chegar até onde está o meu filho, disse a Mãe. Pode ficar com meus olhos.

No mesmo instante seus olhos caíram no fundo do lago e se transformaram em pérolas, e o lago levou-a  no Barco de Caronte, rumo à Eternidade, até a margem oposta da vida.
E lá foram noite adentro para o outro lado da vida, para a Eternidade. Do outro lado a Mãe percebeu que havia uma caverna com porta estranha de seis metros de largura, seis de altura. O cheiro era horrível e o calor insuportável. 
Não se podia dizer ao certo se era uma montanha com lavas e cavernas ou se era uma parede de ferro. Lá dentro era quente e vermelho mais que um vulcão. Mas a pobre Mãe, como nada via, perguntou a uma coisa parecida com uma velha bruxa que cuidava da grande estufa da Morte:


– Onde acharei a Morte que levou o meu filho ?
– Ela ainda não chegou – respondeu a velha. - como conseguiu vir até aqui? Quem a ajudou?
– Deus Nosso Senhor, que é todo misericordioso, me ajudou – disse a Mãe. Onde poderei encontrar meu filhinho?
– Não o conheço e você também não enxerga.Respondeu a velha. Muitas flores e árvores murcharam esta noite. A Morte não tardará a vir para transplantá-las. Deve saber que cada pessoa tem sua árvore da vida ou sua flor, conforme sua índole. Elas se parecem com as plantas comuns, mas têm um coração que pulsa. Também o coração das crianças bate! Guie-se pelas batidas, e talvez reconheça o coração de seu filho. Mas, o que me daria para eu lhe explicar o que ainda terá de fazer?
– Nada tenho para dar, respondeu a mãe mas por meu filho irei até o fim do mundo.
– Nada tenho para fazer lá – respondeu a velha bruxa – mas pode dar-me seus longos cabelos pretos que lhe direi. Como sabe, são muito belos. Em troca, receberá meus cabelos brancos. Sempre é alguma coisa.
    A Mãe fez o que a velha pediu e logo entrou com ela na grande estufa da Morte, onde flores e árvores cresciam em estranha promiscuidade. Cada árvore e cada flor tinha um nome, cada uma delas era uma vida humana espalhada pelo vasto mundo. A Mãe, angustiada, curvou-se sobre todas as plantas. Ouviu bater dentro delas corações humanos e, dentre milhões, reconheceu o de seu filho.
– Aqui está! – gritou, e estendeu a mão para um pequeno cravo vermelho, que pendia triste e murcho.
– Não toque na flor – disse a velha. – Fique aqui e, quando a Morte vier, não a deixe arrancar essa flor. Ameace-a de arrancar outras flores e ela ficará com medo, pois é responsável por elas perante Deus: nenhuma pode ser arrancada sem a permissão divina.
De repente, uma gélida rajada de vento e um forte cheiro de enxofre atravessou o espaço, e a Mãe sentiu que a Morte acabara de chegar.


– Como encontrou o caminho para vir até aqui? – perguntou a Morte. – Como pôde chegar mais depressa do que eu?
– Sou a Mãe – disse ela.
A Morte estendeu a longa mão para a flor cravo vermelho e a Mãe cobriu-a com as mãos. Mas a Morte soprou-as com um vento tão gélido que ficaram paralisadas, e elas tombaram sem forças.
– É inútil... Nada pode fazer contra mim – disse a Morte. – Sou o jardineiro. Tomo suas flores e suas árvores e as transplanto para o grande Jardim do Paraíso, na terra desconhecida. Não ouso, porém, dizer-lhe como crescem ali e o que se passa lá.
– Devolva meu filho! – implorou a Mãe.
Chorou e suplicou e, de repente, desesperada, agarrou duas flores, uma em cada mão.
– Vou arrancar todas essas flores! – gritou para a Morte. – Vou arrancá-las, pois estou desesperada.
– Não as toque! – disse a Morte – Afirma que é desgraçada, mas quer tornar outras mães lá no mundo tão desgraçadas quanto você...
– Outras Mães ?  Como assim... – gemeu a pobre mulher. E logo soltou as duas flores.
– Eis aqui seus olhos – disse a Morte, devolvendo-lhe a visão. Pesquei-os no lago, onde brilhavam com grande intensidade. Eu nem sabia que eram seus. Tome-os de novo. Estão mais claros do que antes. Agora olhe no interior daquele poço fundo - disse a Morte, apontando para um lado. Vou dizer-lhe o nome das duas flores que quis arrancar e verá o futuro delas, toda a sua vida humana. Verá o que estava prestes a arruinar.
A mulher olhou o fundo do poço. Era uma ventura ver como uma das vidas se tornava uma bênção para o mundo, ver quanta felicidade e alegria desdobrava-se ao seu redor. E ela viu a outra vida, repleta de penas e atribulações, de terror e de miséria.
– Uma e outra são resultado do Criador, da vontade de Deus – disse a Morte. – Direi, apenas, que uma das duas flores era a do seu filho. Viu o destino e o futuro do seu filho ?
A Mãe soltou um grito de susto.
–  Qual delas era a do meu filho? Diga-me! Liberte o inocente. Livre o meu filho de toda a miséria! Leve-o, será melhor. Leve-o ao reino de Deus! Esqueça minhas lágrimas, minhas súplicas, tudo quanto eu disse ou fiz!
– Não a entendo – retrucou a Morte. – Quer seu filho de volta, ou quer que o leve para o lugar que você não conhece?
A Mãe torceu as mãos e caiu de joelhos.
– Não me ouça! – suplicou a Deus. – Se o que peço é contra a Vontade Divina, que é sábia, não me ouça. Não me ouça!
Dito isso, baixou a cabeça.
Então a Morte afastou-se, levando o seu filho para a terra desconhecida. Para a eternidade.

STANISLAW PONTE PRETA - PROVA FALSA

Prova Falsa
Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)
Quem teve a ideia foi o padrinho da caçula - ele me conta. Trouxe o cachorro de presente e logo a família inteira se apaixonou pelo bicho. Ele até que não é contra isso de se ter um animalzinho em casa, desde que seja obediente e com um mínimo de educação.
— Mas o cachorro era um chato — desabafou.
Desses cachorrinhos de raça, cheio de nhém-nhém-nhém, que comem comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um chato de galocha. E, como se isto não bastasse, implicava com o dono da casa.
— Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu entrava em casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de cachorro de francesa.
Ainda por cima era puxa-saco. Lembrava certos políticos da oposição, que espinafram o ministro, mas quando estão com o ministro ficam mais por baixo que tapete de porão. Quando cruzavam num corredor ou qualquer outra dependência da casa, o desgraçado rosnava ameaçador, mas quando a patroa estava perto abanava o rabinho, fingindo-se seu amigo.
— Quando eu reclamava, dizendo que o cachorro era um cínico, minha mulher brigava comigo, dizendo que nunca houve cachorro fingido e eu é que implicava com o "pobrezinho".
Num rápido balanço poderia assinalar: o cachorro comeu oito meias suas, roeu a manga de um paletó de casimira inglesa, rasgara diversos livros, não podia ver um pé de sapato que arrastava para locais incríveis. A vida lá em sua casa estava se tornando insuportável. Estava vendo a hora em que se desquitava por causa daquele bicho cretino. Tentou mandá-lo embora umas vinte vezes e era uma choradeira das crianças e uma espinafração da mulher.
— Você é um desalmado — disse ela, uma vez.
Venceu a guerra fria com o cachorro graças à má educação do adversário. O cãozinho começou a fazer pipi onde não devia. Várias vezes exemplado, prosseguiu no feio vício. Fez diversas vezes no tapete da sala. Fez duas na boneca da filha maior. Quatro ou cinco vezes fez nos brinquedos da caçula. E tudo culminou com o pipi que fez em cima do vestido novo de sua mulher.
— Aí mandaram o cachorro embora? — perguntei.
— Mandaram. Mas eu fiz questão de dá-lo de presente a um amigo que adora cachorros. Ele está levando um vidão em sua nova residência.
— Ué... mas você não o detestava? Como é que arranjou essa sopa pra ele?
— Problema da consciência — explicou: — O pipi não era dele.
E suspirou cheio de remorso.


Texto extraído do livro "
Garoto Linha Dura", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 51.

ANÔNIMO - A GATA E O SÁBIO - CONTO ÁRABE

      A Gata e o Sábio        
ANÔNIMO
conto árabe


O sábio de Bechmezzinn (aldeia situada no norte do Líbano) era muito rico. Dedicava o melhor do seu tempo ao estudo e a tratar os doentes que o procuravam. A sua fortuna permitia-lhe socorrer os infelizes e toda a gente dizia que ele era a dedicação em pessoa.
Homem piedoso e recto, a injustiça revoltava-o. Muitas pessoas vinham consultá-lo quando tinham alguma divergência com vizinhos ou parentes. O sábio dava os melhores conselhos e desempenhava frequentemente o papel de mediador.
Tinha uma gata a quem se dedicava particularmente. Todos os dias, depois da sesta, ela miava para chamar o dono. O sábio acariciava-a e levava-a para o jardim, onde ambos passeavam até ao pôr-do-sol. Ela era a sua única confidente, diziam os criados.
A gata dirigia-se muitas vezes à cozinha, onde era bem recebida. O cozinheiro não escondia nem a carne nem o peixe, porque ela nada roubava, fosse cru ou cozinhado, contentando-se com o que lhe davam.
Ora, uma tarde, depois do passeio diário, a gata roubou furtivamente um pedaço de carne de uma panela. Tendo-a surpreendido, o cozinheiro castigou-a puxando-lhe severamente as orelhas. Vexada, a gata fugiu e não apareceu mais durante todo o serão.
Intrigado, o sábio perguntou por ela na manhã seguinte. O cozinheiro contou-lhe o que se passara. O sábio saiu para o jardim e durante muito tempo chamou a gata, que acabou por aparecer.
— Porque roubaste a carne? — perguntou o sábio.
— O cozinheiro não te dá comida que chegue?
A gata, que tinha parido sem que ninguém soubesse, afastou-se sem responder e voltou seguida de três lindos gatinhos. Depois, fugiu e trepou à figueira do jardim. O sábio pegou nos três gatinhos e entregou-os ao cozinheiro que, ao vê-los, mostrou uma grande admiração.
— A gata não roubou comida a pensar nela — declarou o sábio. — O seu gesto foi ditado pela necessidade. Portanto, não é de condenar. Para alimentar os filhos, qualquer ser, mesmo mais frágil do que um mosquito, roubaria um pedaço de carne nas barbas de um leão. A gata limitou-se a seguir o que lhe ditava o seu amor maternal. A conduta dela nada tem de repreensível. O pobre animal está a sofrer por a teres castigado injustamente. Fugiu para a figueira porque está zangada contigo. Deves ir lá pedir-lhe desculpa, para que se acalme e tudo volte ao normal.
O cozinheiro concordou. Tirou o turbante, dirigiu-se à figueira e pediu perdão ao animal. Mas a gata virou a cabeça. O sábio teve de intervir. Conversou longamente com ela e lá conseguiu convencê-la a descer da árvore.
A gata desceu lentamente da figueira, veio a miar roçar-se nas pernas do sábio e foi para junto dos seus três filhotes.
Tradução e adaptação
Jean Muzi
16 Contes du monde arabe
Paris, Castor Poche-Flamarion, 1998
adaptado

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

ANÔNIMOS - ALI BABÁ E OS QUARENTA LADRÓES - CONTO DAS MIL E UMA NOITES

Ali Babá e os 40 ladrões

ANÔNIMOS
        Numa cidade da antiga Pérsia [atualmente, Irã] viviam os irmãos Cássim e Ali Babá. Cássim era um dos comerciantes de tecidos mais ricos da cidade, mas Ali Babá vivia na pobreza e tinha de cortar lenha numa floresta para sustentar a família.
     Um dia Ali Babá estava cortando lenha quando viu uma nuvem de poeira. "— Que será isso?" — pensou. Percebeu que se tratava de homens a cavalo que se aproximavam e vinham em sua direção; com medo que fossem bandidos, subiu numa árvore, junto a uma grande rochedo, e se escondeu em meio à folhagem.


  
    Do alto da árvore podia ver tudo sem ser visto. Então chegaram àquele lugar quarenta homens muito fortes e bem armados de espadas, com caras de poucos amigos. Ali Babá os contou e concluiu que eram quarenta ladrões.
     Os homens desapearam dos cavalos e puseram no chão sacos pesados que continham ouro e prata. O mais forte dos ladrões, que parecia ser o chefe, aproximou-se da rocha e disse:
      — Abre-te, Sésamo !
    Assim que essas palavras foram pronunciadas, abriu-se uma porta na caverna. Todos passaram por ela e entraram na caverna, e a porta se fechou novamente. Depois de muito tempo, a passagem da caverna voltou a se abrir, e por ela saíram os quarenta ladrões. Quando todos estavam fora, o chefe disse:
      — Fecha-te, Sésamo !
     Os bandidos colocaram os sacos em suas montarias e voltaram pelo mesmo caminho pelo qual tinham vindo. Ali Babá os seguiu com os olhos até desaparecerem. Quando se viu em segurança, e ninguém por perto, desceu da árvore, dirigiu-se à rocha e disse:
       — Abre-te, Sésamo !
     A porta se abriu e Ali Babá ficou sem palavras diante do que seus olhos viram: uma grande caverna cheia dos tecidos mais finos, tapetes da Pérsia, belíssimos,  e uma enorme quantidade de moedas de ouro e prata dentro de sacos.
     Ali Babá entrou com os três burros que costumava levar quando ia cortar lenha, e a porta imediatamente se fechou atrás dele. O rapaz carregou os animais com sacos de moedas de ouro e jóias, depois disso, pronunciou as palavras mágicas que abriam e fechavam a porta da caverna e foi em direção à cidade. (Fecha-te Sésamo !)
     Quando viu o ouro, sua mulher pensou que o marido tinha-se tornado um ladrão, mas ele contou tudo o que acontecera, recomendando-lhe que mantivesse segredo absoluto a respeito daquela história e não a contasse a ninguém. Quando Ali Babá falou em esconder as moedas num buraco, a mulher, então, disse:
     — Boa ideia, mas antes quero contar quantas moedas de ouro temos. Vou pedir um medidor ao vizinho, enquanto você cava o buraco.


     O vizinho era, justamente, Cássim, irmão de Ali Babá, que não estava em casa. Ela, então, pediu à mulher dele o medidor emprestado: uma espécie de concha grande, com a qual se calculavam as medidas de açúcar e outros mantimentos. Cheia de desconfiança, a cunhada pensou:
   — Que coisa mais estranha! Para que querem um medidor ? O que é que a mulher de Ali Babá está querendo contar naquela casa tão miserável ?
   Para descobrir o que era, decidiu untar (melecar) com cola o medidor; talvez um pouco daquilo ficasse grudado sem que ninguém percebesse...
     Enquanto Ali Babá cavava, sua mulher calculou as medidas de ouro; depois, foi devolver o medidor à vizinha sem perceber que uma das moedas ficara presa e colada. A vizinha viu a moeda de ouro, ficou espantada, ardeu de inveja e, quando o marido chegou a casa, disse-lhe:
      — Você pensa que é rico, Cássim, mas Ali Babá, seu irmão, é muito mais: até calcula quantas medidas de ouro tem!
     Cássim também foi tomado pela inveja e nem pôde dormir aquela noite. No dia seguinte, foi até a casa do irmão disposto a esclarecer aquilo tudo. Lá, até ameaçou denunciar Ali Babá à polícia, se ele não lhe contasse tudo. Ali Babá, então, acabou por contar o que lhe acontecera; depois, pediu segredo ao irmão, prometendo-lhe, em recompensa, uma parte do tesouro. Cássim concordou e se despediu do irmão. Mas na manhã seguinte, bem cedo, Cássim dirigiu-se à caverna sozinho, com dez burros, disposto a voltar carregado de ouro. Ao chegar à porta da rochedo, disse:
      — Abre-te, Sésamo!
     A porta se abriu, Cássim entrou e ela se fechou de novo atrás dele. Que surpresa e contentamento sentiu quando a sua frente pôde ver tesouros que ele nem em sonho poderia imaginar!
 Apoderou-se de tudo o que podia levar, carregando os burros, e, ficou tão extasiado que, quando foi sair, disse:
     — Abre-te, Cevada!
    Mas a porta continuou fechada. Foi então que ele se deu conta de que esquecera qual era a palavra mágica para abrir a passagem. Apavorado, tentou outras frases, mas nada, não conseguia acertar ! E ficou preso lá dentro da caverna. Por volta do meio-dia, os ladrões retornaram à rocha. Pronunciaram as palavras mágicas e entraram.
    Ao verem Cássim, ficaram furiosos e imediatamente o mataram. Depois, interrogaram-se surpresos: como aquele homem conseguira entrar? Como descobrira o segredo? Para que ninguém ousasse sequer se aproximar da rocha novamente, cortaram o corpo de Cássim em quatro partes e o deixaram pendurado lá dentro. Depois, foram embora.
     A esposa de Cássim ficou muito preocupada quando viu cair a noite sem que seu marido regressasse.
   Foi à casa do cunhado e expressou seus temores. Ali Babá, suspeitando de que algo grave acontecera ao seu irmão, foi para a caverna. Quase desmaiou quando viu o corpo do irmão cortado em pedaços. Recolheu-os em dois sacos e voltou para a cidade com a intenção de sepultá-los.
     Os quarenta ladrões ficaram espantados ao retornar à caverna e não avistarem o corpo de Cássim. O chefe disse ao bando:
     — Estamos perdidos! Precisamos dar um jeito nisso, ou perderemos todas as nossas riquezas. O corpo desaparecido mostra que duas pessoas conseguiram descobrir nosso segredo: liquidamos uma delas, agora precisamos acabar com a outra.
    Um dos ladrões se dispôs a ir à cidade, encarregando-se da missão de descobrir quem era a pessoa que sabia do segredo. Se falhasse, seria morto por seus colegas bandidos, que, despedindo-se dele, elogiaram muito sua bravura.
   Havia um sapateiro na cidade, muito trabalhador e querido, chamado Mustafá. Ali Babá o encarregara de costurar o corpo do irmão Cássim para o enterrar com decência. Por uma infeliz coincidência, foi justamente esse homem sapateiro que o ladrão primeiramente viu ao chegar à cidade de manhãzinha, pois a loja do sapateiro era a única aberta àquela hora. O ladrão o cumprimentou e disse:
    — O senhor começa seu trabalho muito cedo! Na sua idade, não sei como consegue enxergar para costurar esses sapatos!
   — Apesar de velho, respondeu o sapateiro, meus olhos são muito bons. Há poucos minutos costurei um morto num lugar que tinha menos luz que nesta minha loja — respondeu Mustafá.
    Contente com aquela informação, o ladrão deu duas moedas de ouro na mão do sapateiro, rogando-lhe que dissesse onde ficava a casa em que ele costurara o morto. Depois de olhar para aquelas moedas brilhantes, Mustafá acabou por concordar e levou o ladrão até a frente da casa de Cássim, que agora pertencia a Ali Babá. O ladrão pegou um pedaço de giz e fez uma cruz na porta. Depois, foi-se embora em direção à floresta.
     A esposa de Cássim tinha uma empregada muito bonita e esperteza, chamada Morjana. A moça, ao sair da casa, notou o sinal e desconfiou de alguma tramóia:
   — Que será isso? Que coisa mais estranha! Certamente querem prejudicar meu patrão !
    Pegou, então, um pedaço de giz e marcou com o mesmo sinal três portas à direita e mais três à esquerda.
    Os ladrões foram até à cidade e pararam diante de uma das portas que tinham a marca de giz feita por Morjana. O ladrão que tinha estado ali no dia anterior disse:
     — É esta!
    O chefe dos ladrões, porém, notou que havia outras seis casas cujas portas traziam o mesmo sinal e perguntou-lhe qual era, de fato, a porta que ele tinha marcado. Confuso, o homem não soube o que responder. Voltaram todos para a floresta, e o ladrão que falhara em sua missão foi morto pelos colegas.
    Aquilo já era uma afronta! Um dos ladrões se dispôs espontaneamente a retornar à cidade e descobrir onde morava o homem que descobrira o segredo da caverna. Chegou, como o primeiro, ao raiar do dia, e topou com Mustafá. A história se repetiu: o sapateiro acabou por conduzir o ladrão até a casa de Ali Babá. Para não se confundir como o primeiro, o ladrão marcou a casa com tinta vermelha e voltou para junto dos seus comparsas. Como da outra vez, Morjana notou o sinal e marcou várias outras portas das proximidades também com tinta vermelha.
    Quando o bando rumou para a cidade, viu-se diante da mesma confusão da outra vez, e o segundo bandido encarregado daquela missão foi executado.
    Os ladrões agora eram trinta e oito. Depois daquele segundo fracasso, o chefe resolveu ele mesmo se encarregar da missão. Foi pessoalmente à cidade, encontrou Mustafá sapateiro e, diante da casa de Ali Babá, em vez de deixar algum sinal, limitou-se a observá-la cuidadosamente, examinando cada detalhe que a distinguia das outras. Depois, voltou para a floresta e pôs em execução o seu plano.
    Mandou comprar trinta e oito grandes tambores para guardar azeite. Encheu de azeite apenas um deles e, nos outros, fez com que entrassem os bandidos, fortemente armados. Em cada tambor, havia pequenos buracos para que os homens pudessem respirar.
    Com os trinta e sete tambores que serviam de esconderijo aos ladrões e mais um barril cheio de azeite, carregaram-se dezenove mulas, e lá se foi o chefe à cidade. Localizou facilmente a casa de Ali Babá, que estava na frente tomando sol. Disse-lhe:
    — Venho de muito longe e vim à cidade para vender meu azeite. Mas cheguei cedo demais. A noite está caindo e eu preciso dar algum descanso para as minhas mulas. O senhor não poderia me abrigar em sua casa só por esta noite?
    Ali Babá não reconheceu o chefe dos bandidos, que estava disfarçado, e aceitou amigavelmente recebê-lo em sua casa. Mandou que Morjana preparasse para o hóspede um jantar e uma cama. Os tambores foram descarregados das mulas e colocados na garagem da casa.
    Após a refeição, Ali Babá foi dormir, e o chefe dos ladrões conseguiu às escondidas encaminhar-se para onde estavam os tambores. Disse a cada um dos seus homens que neles se escondiam:
    — À meia-noite, quando ouvirem minha voz, usem suas facas e punhais para abrir a tampa dos tambores e saiam.
    Após instruir seus homens, foi ao quarto que Morjana lhe havia preparado e fingiu que dormia. A empregada foi cuidar do serviço de casa. Estava entretida com seus afazeres, quando, de repente, as luzes se apagaram. Mas não havia azeite na casa. Que fazer? O empregado Abdullah, vendo-a toda atrapalhada, disse:
    — Por que essa tempestade em copo de água? Há tantos tambores cheios de azeite na garagem ! Por que você não vai lá pegar a quantidade necessária?
    Assim fez Morjana. Mas, ao se aproximar do primeiro barril, ouviu o bandido que estava escondido dentro dele perguntar, baixinho, pensando que era o chefe:
       — Já está na hora?
    Assustada, Morjana ficou um tempo sem saber o que responder. Percebeu que em vez de azeite aqueles tambores escondiam bandidos perigosos. Rapidamente, pensou num meio de enfrentar aquela situação delicada. Criou coragem e, imitando a voz do chefe dos bandidos, disse:
     — Ainda não é hora. Tenha paciência.
    Morjana foi de tambor em tambor, dando sempre a mesma resposta aos ladrões que lhe perguntavam se tinha chegado a hora. O último tambor continha azeite de verdade. Morjana encheu um jarro, acendeu uma lamparina e pôs em prática seu plano.
    Numa grande panela ferveu azeite. Depois, indo de tambor em tambor, derramou o líquido fervente sobre cada bandido, matando-os todos.
    À meia-noite, o chefe se levantou da cama, foi até a garagem e chamou seus homens. Não houve resposta. Sentindo cheiro de carne queimada, assustou-se. Abriu o primeiro tambor, depois o segundo e os demais — e só encontrou cadáveres. Temendo pela sua própria vida, fugiu correndo.
    De manhã, Ali Babá levantou-se e foi tomar seu banho, sem desconfiar do que se passara. Ao voltar para casa, estranhou que os tambores ainda estivessem na garagem. Morjana, então, mostrou-lhe o que eles na verdade traziam bandidos e contou o que acontecera. Ali Babá ficou muito agradecido e prometeu recompensar a empregada por ela lhe ter salvado a vida. Depois, junto com um outro empregado, tratou de enterrar os bandidos mortos numa grande fossa no cemitério da cidade. Escondeu os tambores e as armas e vendeu as mulas no mercado.
  O chefe dos ladrões voltou para a floresta, furioso e indignado, disposto a se vingar de qualquer maneira. Depois, arquitetou um plano. Com riquezas tiradas da gruta, comprou tecidos finíssimos e abriu uma loja na cidade, fazendo-se passar como comerciante Codja Hussan. A loja ficava em frente do estabelecimento que pertencera a Cássim e que agora era dirigido pelo filho de Ali Babá. O chefe dos bandidos, falso comerciante  pouco a pouco acabou por fazer com que o rapaz o considerasse seu amigo. O bandido muitas vezes o convidava para jantar.
    Um dia, o filho de Ali Babá decidiu retribuir a gentileza, convidando Codja Hussan para jantar. Ali Babá se encarregou de preparar um grande banquete para o amigo do filho. No dia combinado, o bandido, chamado para a mesa, desculpou-se dizendo que não comia comida com sal, pois assim lhe recomendara um médico. Ali Babá, então, mandou que Morjana não pusesse sal na carne que seria servida no banquete. A empregada ficou aborrecida e disse:
       — Mas quem é esse homem que não come sal?
    Intrigada, quando foi ajudar a levar os pratos à mesa, lançou um olhar muito atento para o convidado. De repente, estremeceu: era o chefe dos ladrões que desejava atacar seu patrão! Por isso, não queria comer sal junto com ele. E imediatamente pensou num plano para salvar seu patrão.
    Chegada a hora das frutas, Morjana as levou junto com o vinho. O falso mercador pensava em seu plano: embriagar pai e filho e cravar um punhal no coração de Ali Babá.
    Morjana vestiu-se de dançarina, colocou um punhal no cinto e cobriu o rosto com um véu. Chamou um músico para tocar violão e os dois entraram na sala do banquete, pedindo permissão para se apresentarem. Ali Babá respondeu:
       — Capriche, Morjana, e faça o melhor que puder para entreter nosso hóspede Codja Hussan!
    O hóspede fingiu estar encantado com aquela proposta que, na verdade, vinha atrapalhar seus planos. O músico pôs-se a tocar o violão e Morjana a dançar com passos e movimentos delicados. Depois, a dançarina passou para um novo tipo de dança, a que mais agradou: tomou do punhal e com ele fingiu atacar um inimigo invisível. Por fim, parou e pegou o violão para pedir aos presentes um pagamento, como faziam os dançarinos profissionais.
    Ali Babá deu-lhe uma moeda de ouro, e o mesmo fez seu filho. 
        
       Quando chegou a vez de Codja Hussan, no momento em que ele pôs a mão em sua bolsa para pegar uma moeda, Morjana mais do que depressa cravou o punhal em seu coração, matando-o, pois era um monstro, não eras uma pessoa de verdade. Ali Babá exclamou:

     — O que você fez? Matou um hóspede, um amigo de meu filho. Isso será a minha ruína!
    Morjana, então, contou ao patrão o que descobrira. Fez com que ele olhasse atentamente o rosto do falso mercador e reconhecesse o chefe dos ladrões. Mais uma vez, fora salvo pela empregada. Agradecido, disse:
     — Você me salvou por duas vezes; agora eu lhe darei muito ouro. Mais: em recompensa por sua lealdade, você será minha nora.
    Enterraram, então, o corpo do chefe dos bandidos e, dias depois, festejou-se o casamento do filho de Ali Babá com Morjana, em meio a cantos, danças e muitas outras diversões.
    Ali Babá demorou um ano para retornar à gruta, pois ainda não sabia que todos os quarenta ladrões estavam mortos. Depois de um ano, mais tranqüilo, voltou para lá. Diante da caverna, disse:
       — Abre-te, Sésamo!
    E a porta se abriu. Ali Babá notou que ninguém mais entrara na caverna; os ladrões, portanto, estavam todos mortos. Agora só ele sabia do segredo. Encheu alguns sacos com moedas de ouro e prata e voltou para sua cidade.
    Com o passar do tempo, Ali Babá contou o segredo a seu filho e depois a seus netos. Ali Babá e sua família viveram o resto de sua vida na riqueza, naquela cidade onde um dia ele fora muito pobre.
    Graças àquele tesouro, Ali Babá se tornou um homem respeitado e honrado.