A HISTÓRIA DE UMA MÃE
de Hans CHRISTIAN Andersen
adaptação: E. Pimentel
A Mãe estava sentada ao lado do berço do filhinho,
muito triste e apreensiva, mão no rosto, temerosa de que ele morresse. A
criança, pálida, parecia dormir e respirava fracamente.
Ouviu baterem à porta e viu entrar por
ela, sem que lha abrissem, um aparentemente, pobre velhinho,
andrajoso, envolto em um cobertor preto com forte cheiro de enxofre.
Trazia na mão direita uma foice e, na esquerda, uma ampulheta (ampulheta -
antigo apetrecho, feito de vidro e com areia dentro, que, antes da
invenção do relógio, servia para marcar o tempo / horas). Era pleno inverno e o
velho parecia tremer de frio. A geada era forte. A Mãe ofereceu-lhe uma caneca
de café quente e o convidou a sentar-se ao seu lado, na lareira, para se
aquecer. A criança dormia e o velho aproximou-se, postou-se ao lado dela e
ficou balançando o berço, fitando profundamente o menino doente que agora
respirava com dificuldade.
- Não acha que ele vai sarar e que ficarei
com ele? – perguntou-lhe a mãe.
– Não crê que Deus Nosso Senhor não o irá tirar de
mim? - complementou.
O velho, que era a própria Morte, balançou a cabeça
de uma maneira estranha que tanto podia significar “sim" como "não".
A mãe, chorando, baixou os olhos e, como não
pregava os olhos havia três dias, recostou-se a um canto e, exausta, cochilou.
Depois de um breve instante acordou sobressaltada, tremendo de frio, e percebeu
que o velho havia desaparecido com a criança.
Ah ! antes
fosse um sonho, pensou a mãe, ou até mesmo um pesadelo. Mas não - era a mais pura
realidade.
Assim, a mãe saiu correndo de casa,
gritando por seu filho e viu, lá fora, na escuridão, uma coisa esquisita, de
longas asas, que estava sentada no meio da lama,
tentando alçar vôo.
– A Morte esteve no seu quarto – disse a
coisa. Vi-a sair apressada, levando seu filho. Ela corre mais rápido
que a luz e nunca traz de volta o que leva.
– Mostre-me apenas o caminho que ela tomou e irei
em seu encalço, disse a mãe, aflita.
– Conheço o caminho, mas se quer que o ensine, terá
de cantar para mim todas as canções de ninar que cantava para o seu filho.
Gosto de ouvi-las. Sou a Noite.
– Cantarei todas – disse a Mãe. Mas não
me detenha, pois preciso alcançar a Morte e recuperar o meu filho.
A
Noite permaneceu em silêncio. A Mãe, então, começou a cantar todas as canções
de ninar que conhecia. Eram muitas as canções. Terminou, e finalmente a Noite
mostrou-lhe o caminho dentro do escuro pinheiral. E a Mãe
embrenhou-se nele.
Mas, no mais profundo
do pinheiral o caminho bifurcava-se e ela, não sabendo para que lado seguir,
tonta de sono e com os olhos já embaçados, perguntou a um arbusto espinhoso,
sem folhas nem flores, com os galhos revestidos de gelo:
– Arbusto, por acaso não viu a Morte passar por
aqui, levando meu filhinho ?
– Vi – respondeu o arbusto – mas só o
direi se me aquecer junto ao seu coração. Estou morrendo de frio. Eu sou os
espinhos da vida. Lá na Eternidade, para onde você vai, reside a
Morte.
Atendendo a proposta a mãe apertou o arbusto contra o
peito, e os espinhos penetraram em sua carne. O arbusto reviveu e brotou, e
cobriu-se de folhas verdes e de flores, tal era o calor que brotava daquele
coração de Mãe. Ato seguinte, seguindo o caminho indicado por ele, a Mãe chegou
a um grande lago
onde o caminho acabava.
Para atravessá-lo, tinha que sorver toda a sua
água. A desesperada Mãe abaixou-se e começou a beber. Era impossível, mas
esperava que, por milagre, pudesse fazê-lo.
– Nunca conseguirá beber-me – disse-lhe o
grande lago. - É melhor fazermos um trato. Gosto de colecionar
pérolas e seus olhos são as pérolas mais claras
e lindas que já vi. Se me der seus olhos, poderei carregá-la até o outro lado,
para a Eternidade, para a grande estufa
onde mora a Morte. Lá, flores e árvores representam vidas humanas. Sem os olhos
humanos e apenas com o coração você conseguirá ver na Eternidade.
– Tudo farei para chegar até onde está o meu filho, disse
a Mãe. Pode ficar com meus olhos.
No
mesmo instante seus olhos caíram no fundo do lago e se transformaram em
pérolas, e o lago levou-a no Barco de Caronte, rumo à Eternidade, até a
margem oposta da vida.
E lá foram noite adentro para o outro lado da vida,
para a Eternidade. Do outro lado a Mãe percebeu que havia uma caverna
com porta estranha de seis metros de largura, seis de altura. O
cheiro era horrível e o calor insuportável.
Não se podia dizer ao certo se era uma montanha com
lavas e cavernas ou se era uma parede de ferro. Lá dentro era quente e vermelho
mais que um vulcão. Mas a pobre Mãe, como nada
via, perguntou a uma coisa parecida com uma velha bruxa que cuidava da grande
estufa da Morte:
– Onde acharei a Morte que levou o meu filho ?
– Ela ainda não chegou – respondeu a
velha. - como conseguiu
vir até aqui? Quem a ajudou?
– Deus Nosso Senhor, que é todo misericordioso, me
ajudou – disse a Mãe. Onde poderei encontrar meu filhinho?
– Não o conheço e você também não enxerga.Respondeu
a velha. Muitas flores e árvores murcharam esta noite. A Morte não tardará
a vir para transplantá-las. Deve saber que cada pessoa tem sua árvore da vida ou
sua flor, conforme sua índole. Elas se parecem com as plantas comuns, mas têm
um coração que pulsa. Também o coração das crianças bate!
Guie-se pelas batidas, e talvez reconheça o coração de seu filho. Mas, o que me
daria para eu lhe explicar o que ainda terá de fazer?
– Nada tenho para dar, respondeu a mãe mas
por meu filho irei até o fim do mundo.
– Nada tenho para fazer lá – respondeu a velha
bruxa – mas pode dar-me seus longos cabelos pretos que lhe direi. Como sabe,
são muito belos. Em troca, receberá meus cabelos brancos. Sempre é alguma
coisa.
A Mãe fez o que a velha pediu e logo
entrou com ela na grande estufa da Morte, onde flores e árvores cresciam em
estranha promiscuidade. Cada árvore e cada flor tinha um nome, cada uma delas
era uma vida humana
espalhada pelo vasto mundo. A Mãe, angustiada, curvou-se sobre todas as
plantas. Ouviu bater dentro delas corações humanos e, dentre milhões,
reconheceu o de seu filho.
– Aqui está! – gritou, e estendeu a mão para
um pequeno cravo vermelho, que pendia triste e murcho.
– Não toque na flor – disse a velha. –
Fique aqui e, quando a Morte vier, não a deixe arrancar essa flor. Ameace-a de
arrancar outras flores e ela ficará com medo, pois é responsável por elas
perante Deus: nenhuma pode ser arrancada sem a permissão divina.
De repente, uma gélida rajada de vento e um forte
cheiro de enxofre atravessou o espaço, e a Mãe sentiu que a Morte acabara
de chegar.
– Como encontrou
o caminho para vir até aqui? – perguntou a Morte. – Como pôde
chegar mais depressa
do que eu?
– Sou a Mãe – disse ela.
A Morte estendeu a longa mão para a flor cravo
vermelho e a Mãe cobriu-a com as mãos. Mas a Morte soprou-as com um vento tão
gélido que ficaram paralisadas, e elas tombaram sem forças.
– É inútil... Nada pode fazer contra mim – disse
a Morte. – Sou o jardineiro. Tomo suas flores e suas árvores e as
transplanto para o grande Jardim
do Paraíso, na terra desconhecida. Não ouso, porém, dizer-lhe como crescem
ali e o que se passa lá.
– Devolva meu filho! – implorou a Mãe.
Chorou e suplicou e, de repente, desesperada,
agarrou duas flores, uma em cada mão.
– Vou arrancar todas essas flores! – gritou
para a Morte. – Vou arrancá-las, pois estou desesperada.
– Não as toque! – disse a Morte – Afirma
que é desgraçada, mas quer tornar outras mães lá no mundo tão desgraçadas
quanto você...
– Outras Mães ? Como assim... – gemeu
a pobre mulher. E logo soltou as duas flores.
– Eis aqui seus olhos – disse a Morte,
devolvendo-lhe a visão. Pesquei-os no lago, onde brilhavam com grande
intensidade. Eu nem sabia que eram seus. Tome-os de novo. Estão mais claros
do que antes. Agora olhe no interior daquele poço fundo - disse a Morte,
apontando para um lado. Vou dizer-lhe o nome das duas flores que quis arrancar
e verá o futuro delas, toda a sua vida humana. Verá o que estava prestes a
arruinar.
A mulher olhou o fundo do poço. Era uma ventura ver
como uma das vidas se tornava uma bênção para o mundo, ver quanta felicidade e
alegria desdobrava-se ao seu redor. E ela viu a outra vida, repleta de penas e
atribulações, de terror e de miséria.
– Uma e outra são resultado do
Criador, da vontade de Deus – disse a Morte. – Direi, apenas, que uma
das duas flores era a do seu filho. Viu o destino e o futuro do seu filho ?
A Mãe soltou um grito de susto.
– Qual delas era a do meu filho? Diga-me!
Liberte o inocente. Livre o meu filho de toda a miséria! Leve-o, será melhor.
Leve-o ao reino de Deus! Esqueça minhas lágrimas, minhas súplicas, tudo quanto
eu disse ou fiz!
– Não a entendo – retrucou a Morte. –
Quer seu filho de volta, ou quer que o leve para o lugar que você não conhece?
A Mãe torceu as mãos e caiu de joelhos.
– Não me ouça! – suplicou a Deus. – Se o
que peço é contra a Vontade
Divina, que é sábia, não me ouça. Não me ouça!
Dito isso, baixou a cabeça.
Então a Morte afastou-se, levando o seu filho para
a terra desconhecida. Para a eternidade.